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Vovô Geraldo Melo

13 de Setembro de 2020, por Evaldo Balbino

O caminho era uma trilha sinuosa, margeada de capins-gorduras e outras plantinhas sem-vergonha ao longo da jornada. Antes, uma cava escura, uma estrada estreita banhada por um bambuzal, uma ponte velha de madeira cansada sobre um córrego indo com vontade de desaguar num rio maior. Após a casa antiga, velha escola do arraial, a cerca de arame farpado. E nela o tronco por onde passavam pessoas, e não as reses. O tronco era um ziguezague em S, um curto caminho torto. Eu gostava de passar pelos troncos e sonhava que um dia pudessem construir um corredor enviesado como aquele, porém longo como os de um labirinto. Depois uma cachoeira meio plana de pequenas quedas d’água sobre lajedos, com águas escorrendo em planuras, fazendo-se gostosas para se deitar no frio dos dias quentes. E depois a trilha continuava subindo ao lado de muros antigos de pedras mais antigas ainda.

Íamos vovô Geraldo e eu para a fazenda Bela Vista. Lá aconteceria o casamento de um dos seus netos, um primo meu. Ele tinha que levar ovos num balaio para a fazenda. Fui com ele.

Andava o meu avô com dificuldade. Já o conheci assim: cambaleando, pernas lentas em botas de sete-léguas, correia apertada na cintura fina, alto e magro, chapéu sempre na cabeça. E sua fala confusa, enrolada. Com ele, fui aprendendo na vida a fazer leitura labial. E era alegre, proseador. Então nossos olhos tinham que aguçar para pegar o que dizia. Quanto a andar, não; pois era devagar que ele ia, num vagar de câmera-lenta.

As pernas endurecidas e a fala enrolada eram sequelas de três derrames que ele sofrera ao longo da vida. E dos três adoecimentos, seu corpo se levantara com vigor. Erguera-se para a existência com vontade cada vez mais de viver. Porque esta ele tinha, e isso se mostrava nos seus olhos doces, no sorriso de brilho, na alegria silenciosa mas nada silente.

Não conseguia falar o meu nome tal qual o que me deram na santa pia, mas era santo o modo como articulava alguns dos fonemas que compõem a minha identidade de batismo. De sua boca saía vago meu nome. Vago, porém incisivo.

No dia da caminhada para a fazenda Bela Vista, ele me chamava várias vezes, porque o vocativo é poderoso. Repetia meu nome a seu modo para que eu atendesse às narrativas que me contava. E eu respondia a todas, também com vocativos e interjeições, com caras de espanto, com “ohs” longuíssimos, com uma curiosidade que sempre me atravessou e atravessa a vida inteira. E quanto mais eu lhe perguntava, mais sua boca antiga me contava fatos e histórias do caminho que fazíamos.

Na cava, a Luz da Pedra que muitos ali viam. Entre o bambuzal e a estrada, a passagem de anos a fio por pessoas simples que iam para a vila e dela voltavam nos seus quefazeres. Certa feita encontrou-se bem ali, ao lado dos bambus, um homem morto por embriaguez. Contou-me isso com tanta vivacidade, que o falecido ganhou vida em suas palavras. Da ponte me disse que era nova, o que estranhei, pois passávamos em tábuas velhas ameaçando romper-se sob pés incautos. Vendo meu rosto indagador, falou que antes houvera ali uma ponte feita de pau-a-pique e que fora substituída depois pela de agora.

Do córrego não ponderou nada, mas vi seus olhos pequenos namorando as águas indo embora.

Contou-me da escola e das professoras que ali lutaram tantos anos para levar um pouco de letra às pessoas do lugarejo, um alumiar de caminho pelo abecedário. Diante da cerca de arame, suas mãos disseram como faziam cercas, como lavravam e plantavam as terras, como enfrentavam cobras na sua lida, pois que havia muita cascavel na redondeza, sim senhor!

Diante da pequena cachoeira, também nada disse sobre as águas. Amou-as líquidas e frias com seus olhos úmidos. Me falou, porém, das pedras, dizendo que elas eram de muita finura.

Dos muros antigos de pedra relatou casos de escravos que seu pai lhe contava, das pedras que eles carregavam para erguer aquelas muretas nas terras dos homens ricos e esfomeados por divisões. Cada centímetro de terra era motivo de conta. E muita conta se fazia, mas ninguém levava para a sepultura a terra medida e decantada.

Hoje, já falecido, o meu avô é sempre vivo em mim. Guardo comigo esse passeio pela vida feito com ele e a lição de água pelo tempo se indo sem cessar.

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