Alberto da Costa Silva, um embaixador da cultura brasileira


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Ivan Alves Filho*0

fotoO historiador, diplomata e acadêmico Alberto da Costa e Silva, falecido no último dia 26 de novembro (foto Academia Brasileira de Letras)

Durante dois anos, entre 1998 e 2000, eu integrei uma equipe da Unesco, realizando projetos e participando de seminários em Portugal e na França. Tratava-se do Programa Rota do Escravo, que examinava as consequências da escravidão para os povos africanos. Eu tinha sido convocado pelo diretor-executivo da instituição, o diplomata senegalês Doudou Diène, para elaborar um plano de trabalho sobre o tráfico negreiro. O meu livro Memorial dos Palmares, que havia lançado dez anos antes, foi como que a porta de entrada para mim naquela prestigiosa entidade internacional. Eu relatei a Doudou Diène que, sob o meu ponto de vista, era fundamental mudar o eixo de entendimento do tráfico. Ou seja, para além dos danos causados à África – e esses eram reais – e do importante papel da escravidão na acumulação primitiva de capital nas áreas centrais – também incontestáveis –, precisávamos observar que a labuta dos escravizados permitiu a aquisição definitiva de um continente para a Humanidade: as Américas. Era a volta do cipó de aroeira, de certa forma. Afinal, a História tem mão e contramão.

Com efeito, não haveria Brasil, Venezuela, Cuba, Haiti, Colômbia ou mesmo partes consideráveis dos Estados Unidos da América sem o recurso ao trabalho escravo. Do fabrico do açúcar à extração do ouro e deste ao cultivo do algodão e do café, tudo repousou de fato na escravidão. A venda dos homens era o verdadeiro motor da ocupação do solo americano – que estruturava tudo. Tanto isso é verdade que, no caso brasileiro, convém destacar que Angola ficava mais perto do mercado português do que o Brasil. Mais: que os homens a serem futuramente escravizados já se encontravam por lá e que o solo angolano apresentava as mesmas condições para o cultivo da cana de açúcar que o massapê de Pernambuco e da Bahia. O sentido de trazer os angolanos para a Colônia brasileira repousava inteiramente na exploração daquilo que Darcy Ribeiro denominou por “carvão humano”. O chamado modo de produção capitalista nasceu assim, queimando gente nos campos de trabalho. A acumulação na esfera internacional começava pelo comércio dos homens. Esses eram a principal mercadoria.

Diplomata, Alberto da Costa e Silva serviu em Washington, Madri, Lisboa, Roma e Bogotá. Mas, segundo ele mesmo me confidenciou, o que mais o atraía era a África, daí ter pedido para atuar na Nigéria e na República do Benim, o antigo Daomé. As danças, cultos e festividades africanas exerciam um verdadeiro fascínio sobre ele. Ele me contava – e eu ouvia, fascinado – as suas viagens e andanças pelo interior da África, estabelecendo paralelos entre a cultura local e a brasileira. O nosso embaixador foi se impregnando a tal ponto de cultura africana que nos legou obras centrais para a compreensão da História do continente negro, como A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700 e Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África (esse último um livro composto de estupendos ensaios historiográficos, o meu preferido). Alberto da Costa e Silva não tinha uma visão instrumentalizadora ou politicamente manipuladora da escravidão, preferindo entendê-la à luz da época em que despontou, o período colonial.

A contribuição dada pelo embaixador e historiador Alberto da Costa e Silva, por exemplo, para o entendimento das relações diplomáticas entre os países da costa ocidental da África e o Brasil no momento da nossa Independência a partir de 1822, é simplesmente insubstituível: ele prova, em seus ensaios, que os primeiros países a reconhecerem a nossa emancipação política foram os países africanos, justamente.

Eu conversava com o embaixador sobre a resistência do Quilombo dos Palmares e outros temas, como a questão dos retornados “brasileiros” à África, no século XIX. Eu tinha uma boa relação com Xaxá VIII, autoridade real do Benin, descendente de Xaxá de Souza, baiano radicado no Benim na primeira metade do século XIX. O embaixador dedicou um livro a respeito da trajetória do primeiro Xaxá de Souza, o maior traficante de escravos brasileiros na África, que morreu em Uidá, em 1849. Sua família mantém até hoje uma Casa do Brasil em Uidá.

Em determinada oportunidade, tive a honra de expor um trabalho meu em um seminário voltado para o exame da escravidão nas Américas. Apenas 17 historiadores foram convidados para o evento. Presentes pesquisadores de várias partes do mundo. Nós, brasileiros, formávamos a delegação mais numerosa: quatro integrantes, o que muito nos orgulhou. Então presidente da Academia Brasileira de Letras, o embaixador Alberto da Costa e Silva era o principal representante do nosso grupo. Convivi com ele por dez dias nesse Seminário, realizado em Évora. Tinha uma cultura vastíssima. Irônico, era dotado de um humor cortante. Grande humanista, eu o considerava o maior escritor do Brasil. Estive com ele algumas vezes depois na Academia Brasileira de Letras, que o embaixador chegou a presidir.

Alberto da Costa e Silva pertencia a uma geração de brasileiros comprometida com os destinos do país. O Itamaraty, que produziu alguns dos melhores quadros intelectuais do país, era a extensão da sua própria casa. Por seus conhecimentos, foi uma peça decisiva nas comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil. Sua obra veio para ficar. Ela dialoga, e bem, com a de Gilberto Freyre, Edison Carneiro, Nei Lopes e Joel Rufino dos Santos, outros profundos pesquisadores da presença negra no Brasil.

Alberto da Costa e Silva fará falta.

 

*Historiador, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei/MG.

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