BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA: Como o Brasil perdeu a dianteira para os EUA


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José Venâncio de Resende0

Pintura que retrata a mineração no Brasil colonial (fonte site Abramp)

O Brasil, na fase final do período colonial (início do século XIX), tinha uma economia do mesmo tamanho da economia dos Estados Unidos, ou seja, ambos os países exportavam cerca de quatro milhões de libras esterlinas ao ano. Também possuíam populações equivalentes (pouco mais de quatro milhões de pessoas no Brasil e cinco milhões nos Estados Unidos). As cidades brasileiras Rio de Janeiro, Salvador e Recife eram maiores do que as cidades norte-americanas Filadélfia, Boston e Nova Iorque. E o mercado interno brasileiro provavelmente era maior do que o mercado interno dos Estados Unidos.

O livro “História da riqueza no Brasil – Cinco séculos de pessoas, costumes e governos”, Editora Estação Brasil, 2017, do jornalista e escritor Jorge Caldeira*, fruto de 40 anos de pesquisa, trouxe uma reviravolta na narrativa sobre a produção de riqueza no Brasil desde a chegada dos portugueses. “É uma visão completa da evolução na produção de riqueza, do desenvolvimento da economia no Brasil e em relação a outros países.” Resulta das novas tecnologias (informática, bancos de dados), do processamento estatístico de novas informações e de algumas descobertas da antropologia instrumental, que permitiu a construção de um retrato do passado econômico que não era acessível até recentemente.

 

Subsistência?

O livro coloca à prova a ideia de economia de subsistência, comum às diferentes linhas da historiografia tradicional. Os números (censo, documentação de negócios, inventários, testamentos, atas etc.), processados em bancos de dados, mostraram que o tamanho da economia era “imensamente diferente do que se supunha”. Segundo Caldeira, imaginava-se, com base na leitura tradicional dos documentos, que toda a riqueza se concentrava no latifúndio escravista, na exploração de produtos de exportação. “Quando se foi medir, percebeu-se que não: o retrato era de pequena produção no mercado interno gerando muito valor.”

Nos anos 1970 e 80, antropólogos descobriram que especialmente os índios tupis-guaranis, que detinham conhecimento tecnológico de agricultura muito mais sofisticado do que os outros povos. Trabalhando duas horas, produziam o necessário para viver, mais um estoque de reserva alimentar para eventuais momentos de necessidade. Isso permite entender a lógica do encontro de europeus e índios; ou seja, os europeus conseguiram, por exemplo, graças ao fornecimento do ferro de que eram detentores, convencer os índios a fornecerem madeira cortada e outros bens para exportação. “Quer dizer, aumentaram a produção de excedentes.”

Os novos instrumentos de medição permitiram identificar um outro tipo de história econômica, observa Caldeira. A noção, presente desde a base mais antiga da ocupação brasileira, evolui para o sentido da acumulação, mostrando que a produção local tinha outra natureza. Emerge, assim, um retrato de um Brasil completamente diferente da visão clássica, de que a colônia ficou pobre porque organizou a sua produção para a exportação.

 

Riqueza

Por volta de 1800, a economia colonial brasileira era o dobro da economia metropolitana portuguesa, devido ao crescimento do mercado interno. Ou seja: “dado o regime de monopólio do comércio externo, o mercado interno cresceu mais do que o setor exportador”. Estudos econométricos do norte-americano Nathaniel Leff apontam que seis sétimos da economia de 1800 eram mercado interno e um sétimo era mercado externo, “a mesma proporção de hoje. Então, a riqueza do Brasil colonial foi produzida aqui dentro, por quem estava aqui, exatamente naquele setor que, até hoje, se imaginava que não tinha produção de riqueza. Isso muda radicalmente o problema a ser explicado. Não é mais a questão de dar uma resposta nova a um antigo problema. O problema é outro”.

No período colonial, o Nordeste era mais rico do que o Sul. Na época da mineração, Minas, Goiás e Mato Grosso apareceram como economias muito ricas. “Então, o que tornava (o Brasil) mais igual dentro dessa desigualdade de riqueza é que a produção brasileira, ao contrário do que imaginava o modelo clássico, foi feita por pequenos empreendedores. A estrutura básica que produziu a riqueza no Brasil era de pequeno empreendedor individual, autônomo, um grupo quase familiar, organização muito empreendedora – havia muito pouca estabilidade, a sociedade era uma coisa muito móvel”.

 

Empreendedorismo

O trabalho compulsório africano – a escravidão – era parte desse processo para acelerar a acumulação de riqueza, bem como as trocas culturais, acrescenta Caldeira. “O Brasil foi a primeira sociedade do planeta formada por gente vinda de muitos lugares. Por isso, é uma sociedade muito empreendedora.” Por volta de 1800, com uma população de cerca de quatro milhões de pessoas, calcula-se que havia no Brasil 550 mil unidades produtivas, basicamente familiares. “A média de escravos por proprietário era cinco; a mediana, dois ou três. Então, havia uma escravidão mais disseminada dentro de pequena produção empreendedora; isto acontecia no Brasil todo. Aí você começa a entender por que isso era dinâmico, tinha comércio, tinha produção…”

Durante os primeiros 300 anos, o Brasil cresceu mais do que a média europeia. Com a adesão ao nascente capitalismo, as economias ocidentais passaram a crescer mais e o Brasil estagnou-se porque preferiu manter a escravidão, relata Caldeira. “E manter a escravidão, no caso brasileiro, não foi só a questão da manutenção da propriedade de um homem sobre o outro. A escravidão era também a base do sistema legal; o título de propriedade do escravo era o título jurídico mais comumente aceito como garantia no mercado financeiro.” O sistema legal e a organização institucional representavam uma estrutura decadente.

 

EUA na dianteira

A população escrava no Brasil caiu de 20% em 1800 para 5% em 1888, na véspera da abolição, constata Caldeira. “Durante o século XIX, a produção era cada vez menos uma produção escravista e as instituições continuavam as mesmas da escravidão; (...) para manter essa situação de instituições adequadas à escravidão com uma produção decadente, foram-se criando distorções na economia. Então, o Nordeste passou a ser mais pobre do que o resto do Brasil entre 1850 e o fim da escravidão.”

A drenagem de riqueza do Nordeste deveu-se ao tráfego interno de escravos. “Como a escravidão era, em última instância, mais ligada à exportação, toda a sociedade foi sacrificada para que se mantivesse a escravidão. E este é o resultado que deu a estagnação da economia durante o século XIX.” Quer dizer, houve uma mudança no resto do mundo que o Brasil não acompanhou. “A economia colonial, que era produtiva com suas pequenas propriedades, seus empreendedores, não acompanhou a revolução do capitalismo. No final do século XIX, 1890, a economia do Brasil era 15 vezes menor do que a dos Estados Unidos. (O império) foi o período em que o Brasil parou de crescer, mas lá fora ocorreu o inverso. Esse é o período onde se abriu o fosso que separa as economias de ponta da economia brasileira.”

 

*Resultado de leitura do livro (disponível na Biblioteca Municipal de Resende Costa) e de entrevistas do autor ao canal UM BRASIL, da Fecomércio-SP (06/07/2018), e ao programa RodaViva, da TV Cultura de São Paulo.

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