Da infância à universidade: as pedras na vida de Adriana viraram obras de arte


Perfil

José Venâncio de Resende0

Adriana e suas peças, no jardim do Laboratório Escola Cerâmica do CTAN-UFSJ.

Na infância de Adriana, havia pedras, muitas pedras. Depois, ela cresceu e, no seu caminho, encontrou pedras, muitas pedras. Então, Adriana transformou as pedras, da infância e do caminho, em fotos, muitas fotos. E Adriana descobriu que podia transformar as fotos – e as pedras das fotos - em obras de arte; ao todo nove esculturas. Vida e Arte de Adriana maravilharam – e ainda vão maravilhar – muitas pessoas.

A são-joanense Adriana Aparecida de Oliveira Soares, nascida em 1974, passou a maior parte da sua infância no bairro Araçá, espremido entre os bairros de São Geraldo e Senhor dos Montes.

Começou a estudar na E.E. Ministro Gabriel Passos, no bairro Bela Vista, onde permaneceu até a quarta série do ensino fundamental. Então, sua mãe, Joana Carvalho de Oliveira, conseguiu uma bolsa integral no Instituto Auxiliadora para ela concluir o fundamental e cursar o Normal, equivalente ao ensino médio, desde que não repetisse o ano escolar.

Assim, Adriana ingressou no Instituto Auxiliadora, só que não tinha dinheiro para comprar material escolar. “Eu tinha um caderno, um lápis e uma borracha. Eu sofria porque não conseguia acompanhar a turma por não ter o material necessário.”

Ela sempre ficava na dependência de um colega emprestar lápis de cor, cola, tesoura, livro etc. “As tarefas eram feitas no caderno de atividades, acompanhado de um livro. Então, eu ficava sem fazer as atividades. Aí eu chorei muito e pedi minha mãe para me tirar de lá. Minha mãe me tirou de lá e me pôs para trabalhar em casa de família. Ela disse que eu tinha de trabalhar para comprar material e voltar a estudar.”

Assim, Adriana deixou o Instituto no meio do ano letivo e, por ironia, foi trabalhar numa casa de família em frente ao colégio. “Eu ficava vendo as crianças entrando e saindo da escola, de uniforme e mochila nas costas. Eu fiquei muito triste porque queria estudar e não me conformava com a situação.”

Samba

Desde criança, Adriana acompanhava os ensaios da Escola de Samba São Geraldo, que na época ainda era bloco carnavalesco. “Eu ficava lá dançando como uma louca. Minha mãe já desfilava e dizia que era ótimo, que o carnaval de São João e os blocos eram muito animados.”

Aos 17 anos, Adriana ingressou na São Geraldo onde passou a desfilar na ala de passistas. “Sempre quis desfilar, mas eu tinha vergonha, eu era muito tímida.”

Nesse meio tempo, Adriana conheceu Adriano Geraldo Soares, que trabalhava na Fábrica de Tecidos São João, no bairro do Matosinhos. “Fui eu que trouxe o Adriano para a São Geraldo. Ele desfilava na Unidos da Ponte e depois na Girassol. Mas chegamos a ir aos ensaios juntos na São Geraldo.”

Adriana trabalhou em casas de família até o casamento com Adriano, em dezembro de 1997. O casal foi morar no centro da cidade, nos arredores do centro histórico. Ali permaneceu por um ano, mudando-se em seguida para o bairro Bela Vista. “Seis meses depois, quando minha casa ficou pronta, no quintal de minha mãe, voltei para o Araçá.”

A vida seguia seu ritmo, com o carnaval sempre presente a cada início de ano. Por volta de 2000, Adriana foi convidada para ser madrinha de bateria da escola de samba Unidos da Ponte. “A Jaqueline, irmã da Débora, da escola Irmãos Metralha do Largo do Carmo, fez minha fantasia e me apresentou para dona Tetê, que era a fundadora da escola. E ela me convidou. A Jaqueline é fera para fazer as fantasias. Foi a fantasia mais linda com que desfilei - dourada e branco. Então, quase ganhei uma surra das meninas da cidade, queriam me bater. Eu estava na minha melhor forma.”

E Adriana continuava a trabalhar em casas de família até que, em 2001, nasceu o primeiro filho, Arian. “Aí eu parei de trabalhar durante três anos para cuidar do bebê.”

De volta ao estudo

Quando Arian completou um ano e seis meses, Adriana retornou aos estudos no programa de ensino EJA (Educação para Jovens e Adultos) da E.E. Maria Tereza. “Lá eu fiquei até completar o fundamental (5ª à 8ª série).”

Com Arian já crescido, Adriana teve de procurar trabalho para ajudar nas despesas de casa. “Aí fui trabalhar numa pousada em Tiradentes e ainda trabalhava como garçonete à noite no Nonna Buffet da Cantina do Ítalo, que fazia eventos (casamentos, reuniões de empresários etc.) em São João del-Rei e Tiradentes.”

Arian tinha cinco ou seis anos de idade quando Adriana se mudou para o Matosinhos. Nesta ocasião, ela decidiu concluir o ensino médio, deixando assim de trabalhar à noite em eventos. Retomou o EJA na E.E. Padre Sacramento, no bairro Caieira, mas a escola encerrou o programa e os alunos do curso foram transferidos para as escolas Cônego Oswaldo Lustosa, no Guarda-Mor, e Amélia Passos, em Santa Cruz. “Eu preferi ir para o Amélia Passos, que era mais perto, tinha ruas planas e eu podia ir de bicicleta, do que depender de ônibus para ir ao Cônego Osvaldo.”

Adriana estava no último ano do ensino médio quando nasceu o segundo filho, Alan, em 2006. “Passei o terceiro ano todinho grávida. Quase parei. Tive mal-estar, não podia mais ir de bicicleta. Ele nasceu em setembro, faltando dois meses para encerrar o ano letivo. Na missa de ação de graças da formatura, na igreja de São Sebastião de Santa Cruz, eu entrei na igreja com o Alan nos braços.”

Na ACI del-Rei

Quando parou de amamentar, Adriana retomou o trabalho, desta vez na Associação Comercial e Industrial de São João del-Rei (ACI del-Rei). “Fui cobrir férias nos serviços gerais e acabei ficando na empresa.”

Um ano e meio depois, Adriana tirou as primeiras férias. “Então, eu pedi ao sr. Paulo Lourenço, diretor administrativo, para me dar uma oportunidade em outra função, depois das férias. Aí ele perguntou: ´Por acaso, você tem o ensino médio?´ Eu respondi: ´Sim.` ´Por acaso, você sabe mexer com computador?´ Eu respondi: ´Sim´. Eu tinha feito um curso de informática na época do ensino médio, mesmo não tendo computador em casa. Aí ele disse que ia fazer um teste.”

Ao retornar das férias, Adriana foi encaminhada para fazer treinamento no PROE estágio, com a advogada Taiana Toussaint. “Fiz treinamento de seis meses e continuei trabalhando no PROE. Aí comecei a estudar nas horas vagas para o ENEM. Algumas vezes, pensei em parar, achei que estava velha, que tinha passado a minha época, estava cansada… Aí a Taiana conversava comigo, me mostrava alguns vídeos de auto-ajuda, para me incentivar e me motivar.”

No segundo semestre de 2011, Adriana inscreveu-se no curso de Artes Aplicadas da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). “Pensei na possibilidade de fazer um curso que eu pudesse trabalhar por conta. Eu estava com 37 anos. Sair da faculdade e procurar emprego? Aí eu vi nas artes a possibilidade de abrir meu negócio. São João del-Rei, perto de Tiradentes, cidades históricas e turísticas, vi aí a oportunidade.”

Na UFSJ

O início do curso foi difícil para Adriana. “Encontrei muitas dificuldades. Era muito teórico; prática, nada! Pensei até em trancar ou pedir transferência. Mas quando começou a prática, comecei a gostar do curso de verdade.”

Como nem sempre se pode ter duas alegrias ao mesmo tempo, Adriana realizou o sonho da faculdade, mas teve de abandonar os desfiles de carnaval. Assim, em 2012, desfilou pela última vez pela São Geraldo, cujo enredo sobre a vida de Francisca Gonzaga foi campeão do carnaval são-joanense. Ela foi passista da ala do cabaré, com a fantasia de dançarina de cancã. “Sou pé quente! Acho que fechei com chave de ouro.”

No segundo ano da faculdade, Adriana deixou a ACI del-Rei e conseguiu uma bolsa-atividade. “Essa bolsa me deu possibilidade de continuar no curso, não ter de abandonar os estudos de novo.”

A partir daí, Adriana começou a procurar sua identidade artística, cuja definição estava defasada em relação a alguns colegas de curso. “Alguns alunos já trabalhavam e tinham contato com as artes antes da Universidade, e esses já tinham sua identidade artística.”

Foi no sétimo período que Adriana se descobriu como artista. “Eu já tinha alguma bagagem. Convivendo com os colegas que já tinham experiência e participando de algumas exposições coletivas, principalmente em São João e Tiradentes, eu cheguei à minha identidade artística.”

Ao participar de exposições, Adriana seguia proposta temática do professor Cristiano Lima para cada exposição, ou seja, jardim cerâmica, urna da minha aldeia etc. “Essas exposições incentivam o aluno a criar e a se envolver nas atividades do curso. Isto foi muito bom, me deu ânimo, porque a gente mostra a obra e é visualizado por quem está fora do curso.”

Pedras

A disciplina “Laboratório de criação”, da professora Luciana Chagas, foi fundamental para Adriana encontrar sua identidade artística. “A professora fez uma proposta de trabalho, que foi fotografar tudo o que nos chamasse a atenção. Ao fazer a fotografia, o aluno trabalhava o olhar. A gente observava e analisava a foto e desenvolvia um trabalho a partir dessas fotos.”

Adriana saiu a campo com o propósito de fotografar a natureza (árvores, flores, pássaros, pedras etc.). “Como eu tinha pouco tempo, eu fotografei tudo o que vi no meu caminho para a faculdade. Quer dizer, só fotografei pedras (muros, fachadas das residências, calçadas etc.)”

Quando foi analisar as fotos, Adriana se assustou com o resultado. “Não planejei nada disso, foi tudo intuitivo e aleatório. Fiquei por entender porque tinha fotografado aquilo. Não descartei as fotos e tentei entender qual seria o motivo de eu ter só fotografado pedras.”

Adriana ficou ansiosa para chegar à faculdade e buscar uma explicação lógica para essas fotos. “Enquanto passava as fotos para o computador, eu me perguntava: ´por que pedra?´ Aí lembrei-me de um lugar da minha infância onde havia um córrego cercado de pedras, que faz parte da Serra do Lenheiro, que é um paredão de pedra que cerca a cidade e vai por aí afora. A gente chamava o lugar de pedreira. ´Vamos nadar lá na pedreira!´.”

Descoberta

Adriana terminou de passar as fotos para o computador e voltou ao lugar onde passara a infância. “Eu cheguei ao local e me emocionei muito. Estava modificado pelo tempo, com mato e pouca água, mas ainda consegui vizualizar o mesmo lugar onde brincava quando era criança.”

Então, Adriana fez a descoberta decisiva. “Eu cheguei à conclusão que o meu trabalho deveria ser alguma coisa relacionada com aquele lugar. Eu fotografava, eu chorava, eu ria… O meu marido, ali, a olhar pra mim, não entendia nada.”

Adriana lembrou da época em que brincava naquele local. “As lavadeiras, inclusive a minha mãe, iam pra lá com as trouxas de roupa porque não havia água encanada, e a gente ia junto. E ficávamos ansiosas para elas terminarem o serviço para liberar o córrego pra gente nadar.”

Pedra x arte

Adriana decidiu, então, fazer um trabalho relacionado com aquele lugar. “Aí organizei todas as fotos e apresentei em sala de aula - o aluno tinha de apresentar e explicar o motivo porque tinha fotografado. Aí o pessoal começou a perguntar o que eu pretendia fazer para o meu trabalho final. Então, resolvi a fazer a pesquisa em cima do tema ´pedra´ e sua relação com a arte. Foi onde cheguei aos ´menires´, que são monumentos megalíticos ou pedras cravadas verticalmente.”

Como os demais alunos, no sétimo período Adriana já começou a se preparar para a apresentação do TCC. “No meu caso, acredito que essa identidade veio meio que tardia.”

Outra decisão importante de Adriana foi quanto à queima de suas peças. “Decidi que eu mesma teria condições de queimar as peças do meu trabalho de forma independente. E para isso tive de construir meu próprio forno. A construção foi também uma forma de mostrar as habilidades que adquiri durante o curso.”

Adriana teve de se afastar do curso por problemas de saúde. “Durante esse tempo, ia produzindo as peças na minha casa e queimando essas peças. Quando retornei ao curso para a orientação do TCC, já tinha produzido várias peças no forno, em casa. Só faltava a queima de alta temperatura para fundir o esmalte, que tinha de ser feita no forno catenário da Universidade.”

Adriana define essas peças como “esculturas abstratas contemporâneas”. São 11 esculturas menires - peças grandes cujo material (argila, esmalte, queima em alta temperatura) é caro. “A argila veio de Lagoa Dourada em estado bruto e foi preparada por mim em ´paper clay´.”

Estas peças passaram a compor o jardim do Laboratório Escola Cerâmica (LEC) no CTAN-UFSJ, por acordo de Adriana com sua orientadora, na época coordenadora do curso. “Eu fiz uma proposta para a minha orientadora: a Universidade doaria o material e eu deixaria as peças para a Universidade. As peças tornaram-se uma instalação definitiva no LEC, aberta inclusive à visitação.”

“As exposições de que participei desde o início do curso (em espaço público) influenciaram na minha exposição final no LEC, que é também um jardim.” Adriana participou de exposições públicas como “Jardim Cerâmica”, no jardim da Igreja de São Francisco em São João del-Rei, e “A urna da minha aldeia”, no jardim do Museu Padre Toledo, em Tiradentes.

O TCC

O TCC de Adriana foi apresentado no dia 20 de agosto de 2017 durante a “Semana das Artes Aplicadas”. “Meu TCC foi autobiográfico, falei muito da minha vida pessoal, minha vivência”. Na apresentação, ela emocionou-se e deixou emocionados todos os presentes. “Fiquei muito emocionada porque parecia um filme da minha vida. E emocionou tanto a minha família quanto os meus mestres que acompanharam todo o meu processo.”

Adriana encerrou a apresentação com a poesia “A Pedra”, de Fernando Pereira. “Eu disse que me identifiquei muito com esta poesia porque ela tem uma relação direta com o meu trabalho.”

As peças de Adriana fizeram parte da exposição coletiva “VI Cerâmica é linguagem”, no Centro Cultural da UFSJ, entre 31 de maio e 8 de julho, que reuniu os trabalhos dos alunos que concluíram o curso de Artes Aplicadas da Universidade no último semestre de 2017.

 

 

 

 

 

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