“Desconfinamento” em Portugal e Espanha e o futuro do Caminho de Santiago

A vídeoconferência "Quanto tempo pode o Caminho esperar?" foi realizada dia 2 de maio em Barcelos, Portugal.


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José Venâncio de Resende, de Lisboa0

Caminho Português de Santiago, antes da pandemia (Fonte: Sapo).

Com a pandemia de covid-19, de repente desapareceu a massificação do Caminho de Santiago - os chamados “turigrinos” - tão criticada por associações de albergues de peregrinos. Depois desse confinamento, a natureza está mais limpa e é uma nova fonte de energia para se focar nos valores do Caminho (solidariedade, amizade e liberdade), resumiu Celestino Lores, presidente da Federación Internacional de Asociaciones de Amigos del Camino Portugués de Santiago, em conversa informal (por videoconferência), no dia 2 de maio, promovida pela Associação Albergue Cidade de Barcelos (ACB) em parceria com o Pelouro do Turismo do Município de Barcelos.

Mas para que isso aconteça, antes de mais nada, é preciso reabrir a Catedral de Santiago de Compostela, as fronteiras entre países, hoteis, pensões e albergues, lembra Abel Ribeiro, do Refúgio Senhora a Hora em Matosinhos. O Caminho deve voltar plenamente quando as pessoas puderem se abraçar, acrescenta Óscar Miguel do Albergue de Peregrinos do Porto. Mas será que, nos próximos anos, o Caminho que é de todos não se tornará um caminho só para os ricos?, questiona Antônio Herculano do Restaurante Pedra Furada.

Desde o dia 14 de março, todos os albergues de Portugal e Espanha estão fechados por causa da pandemia, porque não havia mais segurança nem para os peregrinos nem para a comunidade local, lembra Lúcio Lourenço, da ACB. Depois de fechar as portas, muitas associações não cessaram atividades enquanto foi preciso apoiar os peregrinos que foram surpreendidos no Caminho.

O fechamento aconteceu numa altura em que o número de peregrinos crescia substancialmente, comparado ao mesmo período de 2019, e se discutia a massificação do Caminho e formas de contê-la, recorda Lourenço. Em 6 de março, o Albergue Cidade de Barcelos preparava um Plano de Contingência, que visava reduzir a capacidade de acolhimento, criar área reservada de isolamento (para eventuais suspeitos de coronavírus), disponibilizar informações sobre os melhores hábitos perante à pandemia e apelar à responsabilidade dos peregrinos.

Cinco dias depois, em 11 de março, foi preciso fechar o albergue por não reunir as condições de segurança (especificamente ao nível de saúde pública), relata Lourenço. “Foi a primeira vez que o Albergue Cidade de Barcelos não esteve disponível para Peregrinos desde a sua abertura (julho de 2012). Logo depois, no dia 14 de março (sábado), a totalidade dos albergues de peregrinos, em Espanha e Portugal, encontravam-se fechados.”

Até então, havia uma expectativa de que o movimento deste ano seria superior ao de 2019. Esperava-se que este ano se ultrapassassem as 100 mil compostelas (documento fornecido pela Oficina do Peregrino em Santiago, que reconhece que o peregrino percorreu os últimos 100 km a pé ou 200 km de bicicleta até alcançar o Túmulo do Apóstolo), conta Lores, da Federação de Associações.

No momento em que o Caminho está “fechado” e os albergues estão vazios, procura-se perceber para que serve uma associação jacobeia que se dedica ao acolhimento de peregrinos, observa Lourenço. “Temos de aproveitar este momento de paragem e confinamento para pensarmos no futuro, que não sabemos se vai ser daqui a um mês, três meses ou seis meses, e prepararmo-nos para a retoma do Caminho, da peregrinação e da hospitalidade.”

Desafios

Embora não haja data definida para se retomar o Caminho de Santiago, as albergues associativos ou públicos vivem entre a expectativa e desafios. “Há datas indicativas para a abertura de alguns serviços”, informa Lourenço. Fala-se em 18 de maio, data em que haverá alguma normalidade ao nível da abertura de restaurantes e de mais liberdade de movimentação no interior de Portugal. ”Mas, sem fronteira aberta (não há data prevista para abrir a fronteira com a Espanha), não será possível chegar a Santiago.”

Enquanto se espera pela reabertura do Caminho, Lourenço deixa questões a serem respondidas. Uma delas é sobre as condições em que se poderá retomar o Caminho, sem prejudicar a segurança dos peregrinos, especialmente no convívio social dos cafés, bares, restaurantes e dos próprios albergues ou alojamentos onde o potencial de contágio é uma realidade. “De que forma será possível retomar o ´nosso´ Caminho sem por em causa a segurança?”

Outra é sobre a volta à normalidade, ou seja, a realização plena do Caminho além fronteiras. “De facto, com a abertura da fronteira Portugal/Espanha e disponibilidade de alojamento (mesmo que privado), poderá haver Caminho (neste caso, o Português)”, acrescenta.

Isto permite Lourenço encadear uma outra questão: “De que forma será possível haver Caminho sem o convívio corrente dos albergues e restaurantes e sem a proximidade social entre os peregrinos que neste momento está proibida?”

Além disso, comenta-se nas redes sociais, e mesmo na mídia, que os tradicionais albergues não tem estrutura adequada para abrigar grande aglomeração de peregrinos e cumprir o distanciamento social em situação de pandemia. Lourenço lembra que tanto albergues quanto edifícios públicos, hoteis, restaurantes e cafés tem “espaços comuns” como casas de banho (banheiros) partilhadas. “Será que os albergues serão os parentes pobres na resposta à pandemia?”

Outra indagação é quanto ao fôlego das estruturas do Caminho (albergues, alojamentos, restaurantes, bares e até o transporte de mochilas) de suportar por muito tempo o fechamento ou mesmo funcionamento com grandes restrições. Os albergues por donativos, mesmo não tendo grandes despesas fixas, também não tem qualquer tipo de apoio público, assinala Lourenço. Por isso, a redução de capacidade, passando a receber menos peregrinos, o aumento de custos com higienização e a necessidade de manter um hospitaleiro-voluntário (tanto para check-in como para controle de temperatura corporal de peregrinos) tornam estas estruturas associativas inviáveis no curto e médio prazos.

Além disso, Lourenço aponta os riscos a que estarão expostos os hospitaleiros-voluntários, que estão na linha de frente dos albergues. “Será que podemos pedir a hospitaleiros-voluntários que, para além de doarem o seu tempo, se ponham colocar numa situação de risco pessoal, pelo contacto diário com peregrinos?”

Por outro lado, albergues que venham a receber quatro ou cinco peregrinos por dia não poderão garantir acolhimento aos que estejam no Caminho de Santiago. “Não há capacidade de alojamento, não há capacidade de resposta, então é muito difícil abrigar peregrinos”, diz Lourenço. “Será a reserva prévia uma solução para os tempos de transição? Mas, por quanto tempo? Quem suportará o aumento dos custos? Os Peregrinos?”

Cenário perfeito

A pandemia veio mostrar que nós teremos de nos reinventar, diz Acacio Augusto Castro da Paz, do Refúgio Acacio & Orietta no Caminho Francês de Santiago. “Os filósofos estão dizendo que os momentos de pandemia e de guerra são momentos de conversão. Então, nós que estamos no Caminho estamos no cenário perfeito para esta conversão espiritual, religiosa ou qualquer outro tipo de conversão.”

Os albergues vão ter começar a pensar em como se tornarem parte integrante da busca do novo peregrino, continua Castro da Paz. “Muita gente está perdendo dinheiro, muita gente não sabe nem o que vai fazer depois dessa pandemia, muita gente não vai saber nem como se inventar. Eles vão buscar apoio dentro de uma igreja; os albergues também poderiam fazer esse papel: serem mais atuantes na conversão. Escutar as pessoas, interagir mais.”

Por isso, Castro da Paz apela para uma mudança na forma de comunicar porque “massificação só existe porque falta informação correta das associações, porque se fomenta até hoje o Caminho em maio-setembro. Nós temos 12 meses para trabalhar o Caminho de Santiago e ninguém fomentou os 12 meses. Há 21 anos que eu falo: parem de concentrar o Caminho de Santiago em maio-setembro”.

O verdadeiro espírito do Caminho é sempre vivido no inverno, prossegue Castro da Paz. Ele refere-se aos meses de outubro, novembro, dezembro, fevereiro e março, que “são ótimos para caminhar”, ao contrário do que dizem guias, associações e “grandes livros” do Caminho para quem a melhor época é maio-setembro. “Então, de tanto falar isso, criou-se uma massificação em pouco meses.”

Castro da Paz acredita que o novo peregrino vai buscar outra coisa “porque ele também mudou. O planeta está mudando, as pessoas estão mudando. E se nós, donos de albergues, hospitaleiros, não buscarmos uma nova linguagem para compartir com esse novo caminhante, ele vai buscar em outro lugar o que ele está precisando para complementar o que ele está vivendo em função dessa crise mundial. Esse novo peregrino não vai mais querer saber qual é o melhor hotel na próxima parada, ele vai querer saber com quem pode falar, conversar”.

Castro da Paz espera que estes peregrinos comecem a chegar com a decisão da Azul Viagens de começar a voar do Brasil para Lisboa, em Portugal, uma vez por semana. Porém, a vinda destes peregrinos depende da abertura da fronteira com a Espanha, assim como da Oficina do Peregrino e da Catedral ou de alguma igreja em Santiago de Compostela. O Caminho mais viável e mais seguro no momento é o português “porque ele (peregrino) vai pagar um pouco mais caro na passagem aérea, mas vai ter menos dias”.

Castro da Paz defende que os albergues vão ter de adaptar à nova realidade, reduzindo despesas (“todos vamos ter de nos adaptar de novo a uma vida peregrina”) e buscando novos peregrinos. “Eu já estou com várias reservas para setembro.”

Porém Castro da Paz manifestou-se preocupado com a situação dos 120 albergues “de nível muito alto”, que pertencem à Rede de Albergues Privados, da qual é atualmente secretário. “Nós temos a preocupação de que muitos vão fechar, vão entregar o seu prédio, o seu negócio para o banco, porque não vai ter condição de levar o negócio adiante”.

Limitações

O fator econômico do Caminho é um dos aspectos que preocupam João Medeiros, de Lisboa, peregrino há 10 anos. Ele é “fundamental nas populações locais e nas estruturas que foram sendo desenvolvidas, tanto de albergues quanto de hostels, pequenos hoteis, restaurantes… O Caminho é importante, pelo menos por onde ele passa, na sustentabilidade econômica dessas localidades e dessas populações”.

A pandemia deu-nos “uma oportunidade para pensarmos o que queremos para o futuro, para refletirmos e verificarmos o que é melhor para o Caminho, diz Medeiros. “O Caminho tornou-se global, é de todos. Por isso é que, quando se criticava a parte turística, eu sempre fiquei desconfortável.” Até porque uma pessoa pode ir para o Caminho com uma atitude turística, mas quando chegar a Santiago ter “uma postura muito mais religiosa, espiritual do que aqueles que andam lá 10 anos pra frente e pra trás.”.

No caso concreto da abertura dos voos do Brasil pela Azul (e também pela TAP), prossegue Medeiros, “o que não se sabe é se os turistas que chegarem a Lisboa vão ter de ficar 14 dias confinados porque o Brasil é, neste momento, um fator de preocupação mundial”.

Outra limitação é a falta de “liberadade total de movimento” que os peregrinos poderão enfrentar. Não apenas do Brasil como também de Inglaterra, França, Itália – este último país é uma das principais fontes de peregrinos especialmente para o Porto. Circunstância esta que leva Medeiros a questionar sobre o futuro dos voos “low cost”. “Eu particularmente acho que dificilmente voltarão a ser tão competitivos quanto antes.”

Sobre as condições sanitárias colocadas pela pandemia, devem ser tratadas de forma profissional, acrescenta Medeiros. “Estou convencido de que as entidades sanitárias vão ser muito mais rigorosas daqui pra frente com as acomodações.” Por isso, sugere que as associações e a federação criem um “fator de confiança” para peregrinos que venham a usufruir desses espaços. Ou seja, “criar ferramentas e protocolos para que as pessoas possam seguir e, de uma forma transversal, a todos países (Portugal, Espanha, França)”.
Quanto a empresas que investiram (ou vão investir) em estruturas, Medeiros acredita que os valores deverão ser revistos “e as pessoas vão compreender; vão pagar mais, mas a qualidade tem que ser outra”.

A tão ansiada “desmassificação” chegou. É a oportunidade para as associações, em Portugal, Espanha e França, “tomarem a rédea dessa situação e tentar junto às entidades oficiais encontrar soluções”, conclui Medeiros.

Colaboração

Uma das inciativas dos albergues poderia ser a maior colaboração entre eles, diz o peregrino e hospitaleiro Rafael Monteiro. “Acho necessário fazer uma revisão, perceber os obstáculos que a natureza criou para os peregrinos. Temos que comunicar entre nós cada vez mais, inclusive sobre a chegada do próximo peregrino.”

Monteiro acredita que o número de peregrinos vai diminuir, consideravelmente. “Tínhamos muitos estrangeiros, mas nos próximos tempos vamos ter portugueses, espanhois, quem sabe vem um ou outro de outros países. Acho que é um desafio bom conquistar os portugueses para o Caminho.”

Abel Ribeiro acredita que é possível oferecer um bom serviço, defender o Caminho e até voltar a crescer, “se nós tivermos um relacionamento inter-albergues e reduzirmos a capacidade por um terço, ou fazermos adaptações ao espaço, e tivermos um sistema de reservas – porque não vai haver muitos peregrinos. Este estado de pandemia não vai durar para sempre”.

O propósito dos albergues deve ser cobrir as despesas e servir os peregrinos, não importa o número (seja 10 mil ou 10 peregrinos), acrescenta Ribeiro. Nesse sentido, os albergues deverão seguir as exigências mais restritas que serão feitas pelas autoridades às estruturas privadas existentes no Caminho.

Mas os “oportunistas que se instalaram no Caminho” – “aqueles que só pensam no lucro, no peregrino simplesmente como mais um cliente” - preocupam Antônio Herculano. Ele se refere a alguns alojamentos locais que se tornarão “mais oportunidas com a crise”. “Essa gente terá os cuidados nas suas infraestruturas, nos seus alojamentos para que os peregrinos sintam segurança?”

Além disso, Herculano teme que os voos “low cost” – “um dos grandes milagres do Caminho” – sejam prejudicados pela crise da aviação comercial. “Já existem muitas agências de viagem (alemãs, americanas, australianas, brasileiras e outras) que já organizam pacotes para fazer o Caminho, principalmente para aqueles reformados mais abastados. Toda a gente que tenha importância no comércio local (do Caminho) é bem-vinda. Mas eu não gostaria de ver a minha casa ser frequentada só por essa gente endinheirada que vem com as agências de viagem.”

Porém, até 2021 não teve acontecer muita coisa, na visão de Celestino Lores, da Federação de Associações. “O resto do mundo vai depender de nós (galegos, espanhois, portugueses) para voltar ao Caminho, demonstrando que o Caminho é seguro e está vivo.”

A expectativa é que a situação esteja o mais normal possível até a celebração, em 2021, do Ano Santo Jacobeu, o tradicional Jubileu que acontece desde a Idade Média em Santiago de Compostela, na Galiza. O último foi celebrado em 2010 e os próximos, para além de 2021, estão previstos para 2027, 2032 e 2038.

Veja a íntegra da vídeoconferência:

https://www.facebook.com/alberguedebarcelos/videos/1142986822733642

 

 

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