Filhas de São Camilo: 60 anos de doação à saúde de Resende Costa


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André Eustáquio e Emanuelle Ribeiro0

Irmã Ernestina (de pé) é testemunha do trabalho vitorioso das Filhas de São Camilo em Resende Costa

Quem chega à Praça Cônego Cardoso, centro de Resende Costa, e se depara com os dois prédios do Hospital Nossa Senhora do Rosário, não imagina a história que está por trás daquelas paredes. Essa história começa a ser contada a partir do dia 2 de fevereiro de 1954, data da posse das Irmãs Filhas de São Camilo na direção do hospital. Esta data representa também um “divisor de águas” para a saúde pública de Resende Costa.

Na década de 1950, a pequena cidade sofria com a falta de infraestrutura. Não havia água tratada, a luz elétrica era precária, assim como o acesso a outras cidades. Grande parte da população do município vivia em estado hoje qualificado de pobreza, principalmente os moradores da zona rural. A situação da saúde, obviamente, refletia a precariedade reinante no município. Faltava médico, enfermeiro, medicamentos e atendimento básico. A maioria das pessoas não tinha acesso a tratamento médico. As gestantes não tinham condições de fazerem o pré-natal e davam à luz em casa, atendidas pelas parteiras. As crianças também não tinham acesso aos tratamentos necessários para crescerem saudáveis. Faltava vacina e a alimentação não era das melhores.

Essa foi a situação encontrada pelas quatro primeiras jovens irmãs que tomaram posse da direção do Hospital Nossa Senhora do Rosário, no dia 2 de fevereiro de 1954, irmãs Tarcilla Gottardi (italiana), Lorenzina (brasileira), Serafina Palarino (argentina) e Savéria Graffon (alemã).

A irmã Ernestina Valmorbida, que em 23 de setembro completará 80 anos, e há quase 40 em Resende Costa, tem muitas histórias para contar. A nossa conversa com ela, na companhia da irmã Amélia Herold, diretora do hospital, do Lar São Camilo e superiora das Filhas de São Camilo em Resende Costa, foi um passeio pela história das irmãs no Hospital Nossa Senhora do Rosário. Irmã Ernestina é memória viva de uma Resende Costa ainda longe do desenvolvimento. Buscar água na fonte, fazer partos à luz de vela, dormir precariamente, são alguns dos desafios que irmã Ernestina e suas companheiras camilianas enfrentaram ao longo dos anos, para realizarem seu trabalho e cumprirem a missão de cuidar dos doentes e promover a saúde. “Tinha muita pobreza aqui. A irmã Paulina [religiosa que aqui trabalhou por longos anos] ia todos os domingos para as roças para aplicar vacina nas crianças. As crianças quando viam a irmã Paulina já saíam correndo (risos)”, se recorda irmã Ernestina.

Além de aplicar vacinas nas crianças da zona rural, irmã Paulina também distribuía medicamentos doados ao hospital pela LBA (Legião Brasileira de Assistência) e pela congregação camiliana. “Tudo que sobrava da nossa casa em São Paulo vinha para Resende Costa, porque aqui era muito pobre”, disse irmã Amélia, que no início da década de 1980 visitou Resende Costa e se lembra da antiga Santa Casa. As irmãs serviam sopa às crianças todas as tardes: “a sopa também era doada pela LBA. A irmãs serviam todos os dias e quando era Natal a gente dava um presentinho às crianças”, conta irmã Ernestina.

A falta de recursos básicos era também um grande desafio a ser superado pelas irmãs no hospital. Irmã Ernestina se lembra do primeiro parto que ela fez, sozinha, sem nenhum médico por perto: “Eu fiquei esperando a noite inteira, sentada no sofá, chegar a hora daquela mãe. Fiz o parto sozinha, à luz de vela, pois não tinha luz naquela noite. Nasceu uma menina”, disse ela sorrindo. Irmã Ernestina relata o trabalho de conscientização feito pelas camilianas junto às gestantes: “Fizemos uma campanha para as gestantes realizarem o parto aqui no hospital. Elas ficavam aqui até três meses, sendo acompanhadas”.

As irmãs viveram dentro do hospital as mesmas dificuldades que grande parte da população resende-costense vivia, como a falta de dinheiro. “As próprias irmãs passavam muita necessidade. Certa vez, a irmã Esther [ex-superiora] precisava ir a São Paulo para uma reunião, mas ela não tinha dinheiro para comprar as passagens. Ela precisava pedir ao tesoureiro do hospital, mas ficou com vergonha e também ficou com vergonha de falar com suas superioras em São Paulo que não tinha dinheiro. O que ela fez? Telefonou para São Paulo e disse que não podia viajar, pois não estava se sentindo muito bem. Essa foi a justificativa dela e foi isso que constou”, disse irmã Ernestina.

 

O legado

As primeiras irmãs que vieram para Resende Costa tiveram que enfrentar os sofrimentos de tempos difíceis para que as gerações futuras pudessem usufruir de um atendimento de saúde digno. A situação em que se encontra hoje o Hospital Nossa Senhora do Rosário é fruto do trabalho incansável de religiosas que vieram de longe e adotaram a população resende-costense. Por essa população elas se doaram e ainda se doam, convictas de sua missão: “Somos religiosas dedicadas aos doentes de todo gênero e condição, inclusive em fase contagiosa. Fazemos  um quarto voto de servir os doentes mesmo com risco da própria vida”, disse irmã Amélia, que fala mais sobre a missão das irmãs ao longo da história da congregação e sobre o trabalho desenvolvido hoje em várias partes do mundo: “No início de 1900, muitas irmãs morreram mártires da caridade na assistência aos tuberculosos e leprosos. Hoje temos casas para doentes de HIV, hospitais, lar de idosos e nas missões continuamos nos dispensários, leprosários e em qualquer parte onde a caridade nos chama. Estamos presentes em vários Estados do Brasil e no mundo, como Itália, Benim, Burkina Faso, Alemanha, Portugal, Polônia,  Espanha, Índia, Sri Lanka, Argentina, México, Colômbia, Chile, Peru, Filipinas, Geórgia e Hungria. Nossa comunidade aqui em Resende Costa é composta por cinco religiosas: irmã Ernestina Valmorbida, irmã Neiva Straginski, irmã Maria do Alivio Luz, irmã Maria Ângela da Silva e Irmã Amélia Herold”.

Irmã Amélia fala sobre a presença das Filhas de São Camilo em Resende Costa e sobre os benefícios que as irmãs trouxeram ao hospital e à saúde pública do município: “Vendo a história da saúde em Resende Costa, percebemos o papel importante das Filhas de São Camilo neste processo. Se olharmos para o passado, percebemos a evolução, como a melhoria da antiga Santa Casa, a atuação das irmãs na saúde pública, principalmente na zona rural de Resende Costa, a atuação na assistência social fornecendo alimento diário a dezenas de crianças carentes, distribuição de cobertores aos pobres e outras ações em prol da pessoa humana”. A religiosa destaca também os desafios atuais: “Hoje os desafios não mudaram muito em relação ao passado como, por exemplo, a falta de recursos econômicos, recursos humanos especializados, principalmente médicos, em consideração à tabela defasada do SUS (Sistema Único de Saúde)”.

As Filhas de São Camilo construíram, ao longo dos 60 anos em Resende Costa, um legado de trabalho, doação e amor ao próximo. A dedicação delas aos doentes rompe as fronteiras do que se entende sobre política de saúde pública no Brasil. Só quem se lembra na cidade das campanhas de vacinação realizadas pela irmã Paulina, dos partos realizados pela irmã Ernestina em situação precária, pode entender o que seja de fato se dedicar à saúde.

Para destacar a importância das Filhas de São Camilo para o Hospital Nossa Senhora do Rosário, recorramos ao grande cronista de Resende Costa, monsenhor Nélson, que lutou incansavelmente para a vinda das irmãs e, em 1986, comemora um sonho realizado. “A 28 de abril de 1986, tornou-se realidade um sonho que vínhamos acalentando desde 1954: a doação às irmãs da Congregação das Filhas de São Camilo de toda a Santa Casa desta cidade com seus imóveis. Houve marchas e contramarchas. Tivemos de enfrentar uma boa faixa da opinião pública contrária à doação. Membros da diretoria da irmandade do Hospital Nossa Senhora do Rosário, não percebendo o alcance da medida, não estavam muito de acordo. Em assembleia por nós convocada, houve com algum esforço, aprovação unânime. Quando fizemos proposta à Superiora Geral em Roma, a congregação, alegando dificuldades, na ocasião, não quis aceitar o hospital como doação. Tendo, em meados de 1984, recebido uma sondagem das irmãs sobre se estaríamos dispostos à doação, recomeçamos o diálogo, apresentando nossas propostas, iniciando nossa troca de correspondência. Já tínhamos alcançado anteriormente licença da autoridade diocesana que para isso ouvira o Conselho Diocesano. A maior dificuldade encontrada foi a situação dos empregados da Santa Casa perante as leis trabalhistas. A congregação religiosa exigiu a legalização de tudo. Com o pagamento de indenizações a alguns empregados que tiveram que ser demitidos, as irmãs receberam todos os imóveis e móveis pertencentes à Santa Casa, livres e desembaraçados de quaisquer ônus...” (Livro do Tombo, 1986).

 

O sonho do monsenhor Nélson era de quem realmente queria o melhor para o seu povo. E ele queria sempre o melhor para Resende Costa. Estava certo quando lutou para a vinda das irmãs e confiou a elas a administração do hospital. Hoje, o Hospital Nossa Senhora do Rosário é referência regional e as irmãs, como já foi afirmado em outra reportagem deste jornal, uma joia preciosa em Resende Costa.

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