“O erro do Lula foi ter facilitado o acesso do povo a bens pessoais, e não a bens sociais – o contrário do que fez a Europa no começo do século 20, que primeiro deu acesso a educação, moradia, transporte e saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais” (Frei Betto, em entrevista à revista Cult).*
O Brasil completou 193 anos de independência, com muitas pendências. Momento oportuno para uma reflexão.
Diferente do que dizem Lula e seus companheiros, os problemas brasileiros não se resumem na luta de pobres contra ricos, tampouco na afirmação simplista de que a “elite” (que elite?) não gosta de pobre. Esse discurso de “palanque” faz muito mal ao Brasil porque embaralha a realidade.
As deficiências do País passam por uma mentalidade tacanha que atribui ao Estado um papel paternalista – o grande “paizão” que resolve os problemas de todo mundo, desde os “sem” (terra, teto etc.), passando por empregados formais, empresários e ONGs, até os políticos. Para completar, criou-se no País a cultura do “emprego público”, em detrimento do estímulo ao empreendedorismo.
O Brasil implantou uma indústria na qual os grandes setores, ironicamente atrelados ao setor público - empresas estatais e grupos empresariais viciados nas benesses e na proteção do Estado -, convivem com um segmento focado na exportação de commodities (produtos minerais e metalúrgicos cotados no mercado internacional). E, na contramão de outras partes do mundo, até hoje não aderiu a cadeias de produção regionais e globais, com exceção da Embraer.
Por outro lado, o País criou um agronegócio altamente competitivo – baseado em tecnologia e empreendedorismo - que acabou por consolidar o nosso papel de exportador de commodities (no caso, agrícolas), apesar da deficiência e dos custos da infraestrutura de transportes até os portos. De qualquer forma, a indústria em geral até hoje não aprendeu com a agricultura a ser eficiente em termos de produtividade.
O Brasil instalou uma República Federativa - de federalismo não tem nada - que foi atropelada por duas ditaduras – a de Getúlio Vargas e a militar – as quais contribuíram para aprofundar o estatismo da economia tão festejado pela “esquerda”. E não para por aí: o País, de característica continental, fez a opção preferencial pela indústria automobilística em detrimento do transporte ferroviário e hidroviário – de carga – e do metrô nas grandes cidades.
O automóvel virou o símbolo do consumismo - aprofundada pelos últimos governos – e ao mesmo tempo da elevada carga de impostos que pesa sobre os produtos e serviços brasileiros – para saciar a fome do Estado gastador. A falta de hábito de poupança tanto pública quanto privada levou à dependência de capital externo, com todas as consequências já conhecidas. Para piorar, o Brasil continua relativamente fechado aos negócios com outros países que gerariam mais riquezas.
O sistema tributário caótico é um fardo pesado para famílias e empresas e fonte permanente de inflação. Acrescente o cipoal burocrático e legal que aumenta custos das empresas e dificulta ações empreendedoras. É o famoso tiro no pé, na medida em que se está matando a galinha dos ovos de ouro, que sustenta a máquina pública.
O País adotou um sistema público de educação, que privilegia o ensino superior em prejuízo do ensino fundamental e médio, dos cursos profissionalizantes e do aprendizado nas empresas; que foca, com viés corporativista, o professor e não o aluno; e que nem sempre está sintonizado com as necessidades de formação de gente preparada para as novas exigências do mercado de trabalho. E, na saúde, criou um sistema universal, o SUS, que, mais do que falta de recursos, padece da má gestão da coisa pública.
Na área política, é um País errante que nunca se definiu claramente por um sistema racional de representação político-partidária. Ao contrário, criou uma balbúrdia partidária financiada por empresas, fonte permanente de corrupção. E adotou um presidencialismo, com voto proporcional, gerador de crises e golpes, incapaz de liderar o País com segurança para um futuro previsível e promissor.
Há que assinalar o maior protagonismo do Poder Judiciário, extensivo ao Ministério Público e à Polícia Federal, conquistado na Constituição de 1988. Explica o agressivo combate à corrupção que já permitiu a recuperação de alguns milhões de reais desviados dos cofres públicos. Há especialistas – não apenas no Brasil – que consideram que o século 21 será o século da Justiça. O temor é que o fortalecimento do braço investigativo do Judiciário possa descambar para nova forma de “autoritarismo”, o que precisa ser evitado para não se tornar desastroso ao sadio equilíbrio entre os poderes democráticos.
Nova “revolução industrial”
O mundo passa por uma nova “revolução industrial”. A tecnologia da informação está criando uma nova economia, que podem chamar de pós-capitalismo ou avanço do capitalismo ou o que quiserem. Pouco importa. Entre as empresas de maior valor no mundo, estão as de tecnologia como Apple, Google, Facebook e Microsoft. Serviços como Uber (táxis), Airbnb (hotéis), Whatsapp (telefone) e Netflix (TV por internet) vieram para ficar, apesar da resistência de setores tradicionais.
A automatização das fábricas tende a abarcar novas ocupações manuais da economia. O que será quando começarem a rodar os veículos sem motorista? O impacto da tecnologia tende a promover mudanças radicais no mercado de trabalho, avançando inclusive nas áreas administrativa e gerencial das empresas.
Mais e mais pessoas se tornarão trabalhadores ou “empresários” individuais, oferecendo os mais diversos tipos de serviços para uma ampla gama de clientes. Ou seja, trabalho individual, criativo e gerador de riqueza, mas que ao mesmo tempo exigirá que cada um cuide do seu próprio futuro (planeje e administre o seu fundo de aposentadoria, por exemplo).
Esta nova economia terá impacto crescente até mesmo no jeito de fazer política, embora os profissionais da política – apoiados por fortes lobbies - resistirão bravamente. Informações em tempo real, pesquisas de opinião pela internet e mobilizações pelas redes sociais vão aferir o desempenho dos políticos de forma rigorosa, colocando-os permanentemente na berlinda. Até a forma de eleição mudará e, daqui a pouco, nem mais será preciso sair de casa para votar – reduzindo o custo das eleições e tornando-as mais frequentes.
O Estado terá de reinventar-se. Este Estado ineficiente e caro terá de dar lugar a um Estado ágil, flexível e criativo; mais regulador, fiscalizador e indutor do desenvolvimento; e que dê prioridade a um ensino focado nas novas necessidades de empregabilidade e de igualdade de oportunidades. Além, claro, de eficiente nos serviços básicos e estratégicos como saúde, inovação tecnológica e segurança. Do poder público, serão cobrados cada vez mais transparência e melhor relação custo-benefício.
A tecnologia da informação virou o mundo de pernas para o ar. O Brasil, que não é uma ilha, vai ter de se adaptar a esta nova realidade dinâmica, “curto-prazista”, globalizada, multiplicadora de velhos e novos desafios. A menos que queira ficar a reboque deste processo. Ultimamente, dizem que até o longo prazo ficou mais próximo, e os problemas futuros também. Precisamos, pois, de uma “revolução de mentalidade”.
*Publicado pelo Diário do Centro do Mundo, em 19 de Maio de 2015: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/frei-betto-o-erro-do-lula-foi-ter-facilitado-o-acesso-do-povo-a-bens-pessoais-e-nao-a-bens-sociais/