Uma das questões que mais se discute na imprensa e no meio político, em Portugal, é a mal explicada transação financeira milionária entre a Portugal Telecom (PT) e a Rioforte, do Grupo Espírito Santo (GES). Afinal, quem foi o responsável pelo negócio? Quem sabia do negócio?
O fato é que a PT foi uma das grandes vítimas do desmoronamento do GES. A operadora portuguesa – em processo de fusão com a brasileira Oi - não recebeu de volta quase 900 milhões de euros de um investimento feito na Rioforte. Com isso, a PT e a Oi tiveram de renegociar os contratos de fusão e a operadora portuguesa acabou por perder espaço para a Oi na holding CorpCo, criada para atuar no Brasil, Portugal e nações da África. A participação acionária da PT na CorpCo deve cair de 37,3% para 25,6%, aumentando assim a fatia dos outros acionistas. Mas o resultado é que a nova empresa ficou menor.
Outras empresas, como a Américo Amorim e a estatal Caixa Geral de Depósitos (CGD), podem estar expostas à dívida do GES. Estas empresas terão de assumir as perdas relativas aos investimentos que fizeram. Resta saber qual a saúde financeira de muitas dessas empresas e qual a extensão dos danos para a atividade econômica (menos capacidade para investir, por exemplo).
O que se segue é um relato (em duas partes), baseado no que foi publicado, especialmente na imprensa portuguesa, antes e depois da intervenção no Banco Espírito Santo, anunciada em 3 de Agosto (domingo) pelo governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa. Foram acontecimentos de tal gravidade que o próprio Carlos Costa chegou a afirmar, em depoimento ao Parlamento, que o sistema financeiro de Portugal caminhou sobre o fio da navalha.
Negócio intrincado
O desmoronamento do GES, cujo expoente era o empresário Ricardo Salgado, abalou a saúde financeira do tradicional Banco Espírito Santo (BES) e de muitas empresas em Portugal. A parte mais visível do GES eram três sociedades constituídas no Luxemburgo - Rioforte, Espírito Santo International (ESI) e Espírito Santo Financial Group (ESPG) - onde eram geridos os interesses internacionais do grupo. E onde estão sob gestão controlada pelos tribunais.
O GES é um universo de cerca de 400 empresas ligadas entre si por complexa rede de participações financeiras, geridas no topo pelas holdings ESI, Rioforte e ESFG, que agora estão sob proteção de credores. As três holdings do topo constituíam um organograma complexo de relações entre empresas sediadas no Luxemburgo, na Suíça, nas Bahamas ou no Panamá. Na estrutura, havia acesso a contas do BES (o principal braço financeiro da família Espírito Santo), da ESFG (principal acionista do banco com cerca de 20%) e da Rioforte, mas acima disso já não havia visibilidade. A ESI, que aloja uma dívida superior a sete bilhões de euros (incluindo 1,3 bilhão que não estavam nas contas) era como se não existisse. Parecia uma caixa preta.
O castelo começou a desmoronar com a crise financeira de 2008, que levou Ricardo Salgado a cometer irregularidades para esconder a real situação financeira do grupo. As regras mais rígidas do Banco Central Europeu (BCE) exigiram sucessivos aumentos de capital para garantir a solidez financeira. As holdings endividaram-se cada vez mais a fim de que a família Espírito Santo conseguisse manter no BES a sua posição de principal acionista. Mas a bancarrota teve o empurrão decisivo de inimigos de Ricardo Salgado (que não são poucos), de dentro do próprio grupo.
Novos empréstimos para pagar juros dos empréstimos antigos tornaram cada vez mais difícil honrar os compromissos financeiros e conseguir dinheiro novo. Para esconder a dívida galopante e a situação de falência técnica, as contas da ESI subavaliavam os passivos. Foram omitidos cerca de 1,2 bilhão de euros de dívida, segundo auditoria externa solicitada pelo Banco de Portugal. Alguns negócios ruinosos, como o imobiliário, contribuíram para o descalabro das contas, cuja situação real foi escamoteada.
O BES foi um dos que emprestaram dinheiro a empresas do grupo, num total de 1,2 bilhão de euros. Mas nos últimos dias - antes de o empresário Ricardo Salgado deixar suas funções no grupo -, houve operações de gestão danosa que aumentaram a exposição do banco aos negócios ruinosos da família Espírito Santo.
Na noite de três de Agosto (um domingo), o presidente do BdP anunciou oficialmente o fim do BES. Em seu lugar, surgiu o Novo Banco que ficou com a parte “boa” do BES (depósitos, balcões e funcionários) e foi capitalizado através da injeção de 4,9 bilhões de euros (recursos da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional). Na verdade, esses recursos deveriam sair de um fundo de resolução mantido com contribuições dos próprios bancos. Mas este fundo é recente (2012) e não tem ainda valor suficiente (dispõe de apenas 380 milhões de euros), daí porque o governo entrou com o empréstimo na expectativa de que os bancos privados viabilizem a devolução do recurso aos cofres públicos.
Já o antigo BES ficou com a parte “ruim” (os portugueses preferem chamar de “banco mau”), os chamados ativos problemáticos ou “tóxicos”, em grande parte relacionados com os negócios da família Espírito Santo. Com a liquidação do BES, os seus acionistas terão de assumir as perdas.
A atuação do Banco de Portugal
Uma crítica que tem sido feita ao BdP, na imprensa e no meio político, é sobre a demora da instituição em intervir no BES. O BdPdetectou os problemas de endividamento da ESI no ano passado e determinou que o BES reduzisse os empréstimos ao grupo e que aumentasse o capital. Investigou as relações de financiamento entre o BES e as holdings do GES, através de auditoria externa, e impôs medidas para isolar os problemas do grupo. Determinou medidas como uma provisão de 700 milhões de euros na ESFG para acautelar um eventual risco de incumprimento. Exigiu mudança na administração do banco, que culminou com a saída de Ricardo Salgado e a entrada de Vítor Bento, e determinou a solução anunciada (o fim da tradicional marca).
Em 12 de julho, dois dias antes de Vitor Bento assumir o BES, Ricardo Salgado informou ao BdP que o banco estava com problemas de liquidez e que seriam necessárias “medidas adicionais” para restaurar a saúde financeira da instituição. Durante dois dias, Salgado e o administrador financeiro Amílcar Morais Pires tinham analisado “detalhadamente” as contas do banco, antes de comunicar ao supervisor bancário que havia problemas. Estas informações fazem parte da ata do último Conselho de Administração do BES que ocorreu em 13 de Julho, um domingo. A última reunião dos administradores do BES antes da saída de Salgado aconteceu às 20 horas daquele domingo, véspera da posse de Vítor Bento, por determinação do BdP.
Na despedida, Salgado ainda deixou uma pequena “bomba”, ao informar sobre a conclusão pouco otimista resultante da análise feita junto com o departamento financeiro. O banqueiro “chegou à conclusão ser importante transmitir ao BdP, por carta (enviada no sábado, 12 de Julho), o seu entendimento quanto à necessidade imperativa de adopção de medidas adicionais ao plano de contingência de liquidez em vigor no BES”.
Quando, a 12 de Julho, o governador do BdP, Carlos Costa, recebeu a indicação de Salgado de que havia problemas nas contas, mesmo depois do aumento de capital concluído em Junho, ainda não se sabia que dias antes haviam sido feitas operações bancárias que penalizaram ainda mais os resultados. Esta ata do BES ajuda a esclarecer a deterioração da situação financeira do banco. Uma das razões invocadas pelo BdP para intervir no BES foi um prejuízo superior ao estimado, alegadamente por práticas de gestão danosa por administradores cessantes que ainda estavam em funções na primeira quinzena de Julho.
Os culpados
Em editorial denominado “Portugal´s Banking Disaster” (06/08/2014), o jornal New York Times referiu-se a “dúbios empréstimos” feitos pelo BES para alavancar negócios que eram controlados pelo grupo da família Espírito Santo. O resultado foi que, na última semana que antecedeu ao anúncio derradeiro do Banco de Portugal, o BES anunciou perdas de 3,58 bilhões de euros no primeiro semestre do ano, principalmente por causa desses empréstimos.
Mas o jornal não atribuiu a falência do BES tão-somente a uma falha dos funcionários portugueses que tinham a primeira responsabilidade por supervisionar o banco. “A Comissão Europeia, O Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) dividem parte da culpa porque eles tem estado intimamente envolvidos no sistema financeiro e econômico de Portugal nos três anos após emprestar 78 bilhões de euros ao país para ajudá-lo sair da crise financeira. Em Maio, as três organizações disseram que ´a capitalização do banco tinha sido significativamente fortalecida´ em Portugal, o que sugere que eles estavam superotimistas sobre o progresso que tinha sido feito”.
Ainda segundo o jornal, este ano o BCE vai promover supervisão dos maiores bancos em países que usam o euro. “Um importante teste da creditiblidade do BCE será quando ele publicar os resultados do ´teste de stress´ dos 128 emprestadores europeus em Outubro. O Banco Central tem de assegurar que este exercício não é um check-up pró-forma que faz os bancos parecerem bons e que esconde seus problemas, como o Banco Espírito Santo parece ter feito. A economia europeia não vai recuperar até que seu sistema bancário seja verdadeiramente saudável.”
(Fontes de informação: Agência EFE, Diário Econômico, Sol.pt, Agência Lusa, SIC Notícias, Expresso, O Globo, The New York Times)