Voltar a todos os posts

Bolsa Família, “Renda Brasil” e renda mínima universal

31 de Julho de 2020, por José Venâncio de Resende

Renda Brasil: nova nota de 200, com a foto do lobo guará, mais alguns reais.

Duas versões circulam nos meios políticos: uma de que o governo virou refém do “sucesso” do Auxílio Emergencial criado para enfrentar a pandemia (visão da área técnica) e a outra de que o governo capturou a ideia da transferência de renda cujo carro-chefe é o Bolsa Família (visão da área política).

Parece que ficou difícil simplesmente acabar com o Auxílio Emergencial devido ao seu impacto nas várias regiões do país. Então, a solução seria do limão fazer uma limonada. Com a vantagem de que já existe a base consolidada do Bolsa Família em todo o país, o que é um ponto de partida importante.

O fato é que, na medida em que as parcelas do Auxílio Emergencial encaminham para o seu final, o governo acelera os estudos para criar o novo programa de transferência de renda, que aumentaria tanto os valores quanto o público abrangido, com a marca “Renda Brasil”.

Uma equipe interministerial (áreas econômica e social) dedica-se à elaboração de um plano que incluiria o Renda Brasil. Fala-se num valor do benefício entre R$ 250 e R$ 300 ao mês e num programa destinado a seis milhões de pessoas (informais, desempregados, autônomos), para além daquelas já atendidas pelo Bolsa Família (43,7 milhões de famílias).

Afinal, o que é o Renda Brasil? O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma que os beneficiários serão os mesmos que estão recebendo o Auxílio Emergencial. Excluídas as famílias de classe média e média alta que pediram o benefício.

Guedes fala ainda em incluir (e mesmo reavaliar) programas como o abono salarial, seguro-defeso (pescadores artesanais) e farmácia popular, bem como melhorar (e ampliar) as informações do Cadastro Único.

Recursos

O desafio é como financiar o Renda Brasil. Especialistas dizem que a ideia do governo ao criar o imposto sobre operações financeiras na internet (transações digitais) é utilizar parte da arrecadação para cobrir as despesas do Renda Brasil. Mas o governo quer mesmo é criar uma nova versão da CPMF sobre todas as movimentações financeiras, inclusive o comércio eletrônico, para aumentar a arrecadação.

Além disso, o primeiro projeto de reforma tributária encaminhado pelo ministro Paulo Guedes ao Congresso Nacional – que prevê a unificação do PIS e da Cofins num imposto de valor agregado federal – tem alíquota de 12%, considerada alta por tributaristas e setores econômicos atingidos. Quebrado por conta da pandemia e da crise econômica, o governo não tem recursos para implantar o Renda Brasil muito menos para desonerar a folha de pagamento como é desejo de Guedes.

De qualquer forma, dado o impacto do Auxílio Emergencial, que “deu um aquecimento extraordinário na economia do Brasil”, Paulinho Daher, vereador e empresário do ramo de farmácias em Resende Costa, em conversa com este jornalista, considerou que, “diante do visível benefício social atrelado ao aquecimento da economia”, vale a pena o esforço. Numa “análise superficial”, ele acha “interessante a criação do programa Renda Brasil, com a fusão ao Bolsa Família”.

Em paralelo à proposta do governo, foi lançada no Congresso Nacional a Frente Ampla pela Renda Básica, presidida pelo deputado João Campos (PSB) e tendo como presidente emérito é o ex-senador Eduardo Suplicy que luta há décadas pela adoção da renda básica. Um dos economistas que mais debatem o tema no momento, Mônica De Bolle, fará parte do conselho consultivo desta Frente, ao lado de outros economistas, de representantes da sociedade civil e de ex-servidores públicos.

Segundo De Bolle, há várias propostas de renda básica no Brasil. “Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são impagáveis.”

Entre as alternativas em discussão, ela aponta a “renda mínima para todas as crianças, universalisando o benefício”, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP. “Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6 anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas deixadas pelos programas sociais existentes.” Seria assim um programa complementar aos já existentes.

Parece-me que o grande desafio será conciliar as propostas do governo federal e da Frente Ampla liderada pela esquerda.

Renda mínima universal

Com a pandemia, as discussões sobre a criação de uma renda mínima universal ganharam novo impulso. Bolsa Família ou Renda Brasil não são a mesma coisa que a ideia de renda mínima universal.

Por inspiração do filósofo e estadista britânico Thomas More (1478-1535), na obra Utopia, o seu amigo Juan Luis Vives propôs, em 1526, à prefeitura de Bruges, na Bélgica, a criação de uma lei que garantisse a todos os cidadãos um auxílio para a sua sobrevivência, independente dos ganhos do trabalho.

A proposta nunca foi implantada, mas deu início a uma discussão que perdura ao longo dos séculos. Foi abraçada por figuras como o filósofo Condorcet (1743-1794), o político Thomas Paine (1737-1809) e o filósofo e matemático Bertrand Russell (1872-1970), de acordo com reportagem de Leonardo Neiva da BBC News Brasil*. “Abrigado na casa de uma amiga enquanto fugia da perseguição em plena Revolução Francesa, o Marquês de Condorcet escreveu, em 1793, Ensaio de um Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano, um de seus trabalhos mais famosos. No último capítulo, o autor defende a distribuição de uma renda fixa para as famílias pobres cujos pais cheguem à velhice sem meios de continuar trabalhando para sustentá-las.”

Amigo de Condorcet, o filósofo americano Thomas Paine, um dos fundadores dos Estados Unidos, publicou, em 1797 na França, texto no qual propunha um fundo nacional, pago a todas as pessoas ao chegarem aos 22 anos, no valor de 15 libras esterlinas e dez libras por ano por toda a vida para todos que passarem dos 50, para permitir que vivam a velhice sem miséria, e deixem o mundo de forma decente. Esse valor seria sustentado por uma taxa paga por proprietários de terras sobre sua herança e chegaria a todos, ricos ou pobres.

O filósofo Bertrand Russell sugeriu, em 1918, uma pequena renda, suficiente para as necessidades” (que) “deve ser garantida para todos, trabalhem ou não, e uma renda maior, determinada pela quantidade de mercadorias produzidas, deve ser dada aos que estão dispostos a se engajar em algum trabalho considerado útil pela comunidade.

Entre os vários defensores de um modelo de renda básica, no século 20, o economista liberal americano Milton Friedman sugeriu a criação de um imposto de renda negativo, em que aqueles com rendimentos mais baixos receberiam pagamentos do governo em complemento à sua renda.

Em 1986, um grupo de estudiosos e pesquisadores criou a Rede Europeia de Renda Básica, hoje de escopo mundial e que se dedica ao estudo e ensino de questões ligadas à renda básica. Entre seus fundadores, o filósofo e economista belga Philippe Van Parijs é um dos principais defensores da ideia no mundo.

A partir da década de 1990, a ideia da renda básica foi encampada por figuras como o economista Thomas Piketty e o empreendedor bilionário Elon Musk, para fazer frente ao avanço da automatização e à substituição de trabalhadores por robôs. Seria uma forma de compensação pelas profundas mudanças que ocorrem no mercado de trabalho.

A precarização e a automação do trabalho estão no centro do debate, que tem a participação da Rede Brasileira de Renda Básica, reunindo estudiosos com o objetivo de educar a população sobre o tema. Esse fenômeno da precarização do trabalho, que decorre em grande parte da automação, faz com que se pense em uma forma de proteção social que não dependa do emprego, diz Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática da UFRJ e vice-presidente da Rede.

Plebiscito

O primeiro plebiscito nacional sobre o tema aconteceu num país rico: a Suíça. Em junho de 2016, o governo suíço submeteu a consulta popular a proposta da renda básica universal, que previa um “salário” mensal de 2.500 francos suíços (R$ 9.000) para todos os adultos e cerca de $625 (R$ 2.200) para as crianças, independente da condição social ou financeira. O plebiscito foi precedido de uma coleta de 126 mil assinaturas por parte de grupos de diversas cidades suíças. A proposta, que defendia a renda básica incondicional (RBI) para todos, não foi aprovada mas ganhou repercussão internacional.

Há 30 anos que o ex-senador Eduardo Suplicy luta pela implantação da proposta da renda básica no Brasil, com base em “experiências formidáveis que ocorrem no mundo. Eu mesmo assisti palestra de Suplicy, no auditório do Instituto de Economia Agrícola (IEA) onde trabalhei, e, olhando para o então senador, pensava quão sonhador ele era.

A lei da renda básica da cidadania, proposta por Suplicy, chegou a ser aprovada e sancionada em 2004, mas nunca saiu do papel. Por esta lei, brasileiros e estrangeiros que vivem no país há pelo menos cinco anos devem ter direito a um benefício suficiente para atender despesas básicas com alimentação, educação e saúde.

Recentemente, Eduardo Suplicy, atualmente vereador paulistano, enviou um exemplar do livro Utopia ao presidente Jair Bolsonaro, com a recomendação no Twitter de que melhor do que distribuir armas será assegurar a Renda Básica de Cidadania para todas as pessoas.

A renda básica universal pode contribuir para sacudir o capitalismo e acabar com as desigualdades, segundo o historiador Rutger Bregman, colaborador de jornais como The Washington Post e The Guardian e autor do ensaio Utopia para realistas, divulgado inicialmente no site The Correspondent.

É uma discussão que tem muito chão pela frente. Já há quem acredite que uma renda mínima universal será financiada pelas empresas de tecnologia e por profissionais altamente especializados e com altos salários. Não será surpresa se, em algum momento, alguém propor a taxação, com alíquotas diferenciadas, de robôs, dos autômatos aos mais inteligentes.

* https://cultura.uol.com.br/noticias/bbc/53494255_nascida-ha-mais-de-500-anos-ideia-de-renda-basica-para-todos-ganha-forca-na-pandemia.html?fbclid=IwAR2YrV1JIZMoNEnDejWbrPK3x5WefEEdHkQaotvjvMRCSrrOEMVil-0P7HU

Fontes:

https://www.jornaldaslajes.com.br/integra/os-primeiros-numeros-do-auxilio-emergencial-em-resende-costa-e-municipios-vizinhos-/3103

https://www.otempo.com.br/politica/governo-cria-forca-tarefa-para-agilizar-renda-brasil-1.2361698

https://www.jornalcontabil.com.br/

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-reforma-tributaria-e-as-inconsistencias-do-governo,70003381787

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-volta-do-mais-do-mesmo/?fbclid=IwAR30KJ2fbwRLDayQPXd4eE-oGgyyYUeRCAy14Bn9r_TB3ad5r7XFpFOuB1k

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,renda-basica-e-impagavel,70003322902

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/23/economia/1490287072_800265.html?ssm=FB_CC&fbclid=IwAR3HiyfFsjSC5oasRnRei8zuoMSoKVh_trZCkG8xDNPrCfhxy1ps9bL52X8

 

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário