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Rota Lisboa (1/2022): O futuro das relações Brasil-Portugal após os 200 anos de Independência

30 de Junho de 2022, por José Venâncio de Resende

Presidente Marcelo Rebelo de Sousa vai participar ativamente das comemorações dos 200 anos de Independência.

Brasil e Portugal estão “convidados a viver em conjunto por decisão das maiorias, numa relação multilateral, já que esta é a vocação dos dois países, disse o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, no encerramento da Conferência Brasil e Portugal: Perspectivas de Futuro”, nos dias 23 e 24 de junho na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (Portugal). “Isto nos aproxima nas Nações Unidas, nas organizações quase universais, nos grandes temas que só podem ser resolvidos multilateralmente: o clima, os oceanos, as migrações, os refugiados, os terrorismos, a fome, a miséria, as desigualdades econômicas, sociais e culturais.”

Otimista, Marcelo manifestou a sua “fé inquebrantável no futuro da confluência duradoura” entre os dois países. Mas considerou que “é bom acompanhar as preocupações dos pessimistas” que “olham normalmente para os pormenores e perdem a noção do conjunto”. Durante várias horas nestes dois dias, ex-presidentes, políticos, empresários, professores universitários e diplomatas abordaram diversas questões, dividindo-se entre otimistas e pessimistas, participaram dos painéis de ex-presidentes (Antônio Ramalho Eanes, Aníbal Cavaco e Silva e Michel Temer) e sobre estratégia, economia e ciência, inovação e cultura.

A principal razão do otimismo do chefe de Estado português é a grande emigração em curso de brasileiros para Portugal. Na qualidade de “simples mortal” e de “um cidadão que tem como função representar um povo”, Marcelo Rebelo de Sousa observou que isto ocorre porque os povos optam antes dos governantes, dos líderes políticos e dos líderes empresariais. São brasileiros de diferentes classes sociais (média alta, média, média baixa) vindos de diferentes Estados, que já somam mais de 200 mil imigrantes, número elevado considerando uma população de 10 milhões. “Em Braga, por exemplo, metade dos encontros que tive durante o 10 de junho (Dia de Portugal) era com brasileiros. Está a transformar o retrato social de Braga. Isso acontece todos os dias com outras cidades portuguesas.”

Segundo o presidente, isto ocorre “por opção de vida”, favorecida por várias pequenas mudanças importantes, como legislação e direito e estatuto dos descendentes num grau mais longínquo português, bem como pela facilidade de circulação na Europa com o estatuto de cidadão europeu ou equiparado. “Começou a mudar o nosso panorama religioso – temos hoje uma comunidade evangélica em Portugal de centenas de milhares que não existia há 10 ou 15 ou 20 anos. Tem expressão política. Não sei se os políticos dão conta disso.”

Trata-se de “uma realidade social que vai dos mais pobres aos mais ricos, mas a grande maioria é classe média, no sentido mais amplo do termo”, relatou Marcelo. Inclui cientistas, investigadores (pesquisadores), acadêmicos (pós-graduação, cursos básicos ou de primeiro grau), profissões liberais, microempresas, pequenas e médias empresas, brasileiros “que me ficam a contar com aquela vivacidade que tem o brasileiro as suas aventuras empresariais, como é que fixaram e como é que estão em plena crise emergente da guerra a ter sucesso”.

Este fenômeno “vai mudando a economia, a sociedade, os hábitos, a maneira de falar, o entrosamento das crianças, o funcionamento das escolas, a vida social”, constatou Marcelo. “Isto está a acontecer e não vai parar, vai continuar”. Em sentido inverso, a comunidade portuguesa no Brasil está se rejuvenescendo. Trata-se de uma “comunidade mais jovem, mais dinâmica, mais inovatória que ou vai pra lá ou circula entre os dois países porque essas migrações em muitos casos são isso: o funcionamento em rede com o digital e a circulação das ideias, das convicções, das pessoas. Isto está a acontecer e é imparável”.

Por isso, Marcelo alerta: “é bom que aqueles que são responsáveis pelos povos percebam isso, porque se perceberem tiram proveito desse fenômeno. É muito importante para nós dois (Brasil e Portugal) o retirarmos todas as virtualidades daquilo que é o nosso presente e o que já começou a ser o nosso futuro”. Para além das comemorações do bicentenário da Independência, o presidente português considera-se “feliz por encontrar todos os dias no campo, na cidade, no interior, no litoral, nas ilhas uma coisa que é mais vasta, que é mais forte, que é imparável”. E lembra: passam os políticos, passam os líderes empresariais, os líderes sindicais (laborais), mas “há uma coisa que continua: os povos”. E conclui: “para aqueles que acreditam em democracia, é evidente que eles (os povos) são a fonte da legitimidade da democracia”; e para os que não acreditam não há outro remédio que não vergarem ao fato de que “de uma forma ou de outro tem de conquistar os povos”.

Questões sem respostas

A conferência refletiu as incertezas sobre o futuro, deixando em aberto respostas para questões levantadas ao longo das intervenções. Depois de mais de 20 anos de negociações, há chance de o acordo de livre comércio União Europeia-Mercosul ser ratificado pelos países envolvidos e transformar Portugal na tão sonhada “porta de entrada” do Brasil na Europa? A tendência de relações bilaterais, principalmente com países africanos, vai prevalecer sobre uma integração multilateral no âmbito da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)? Como superar a baixa complementaridade e os valores ínfimos no comércio entre os dois países e como ampliar os investimentos diretos nas respectivas economias? O que os governos podem fazer para facilitar a vida dos imigrantes que queiram trabalhar e fomentar o intercâmbio entre os estudantes dos dois países? Que níveis de cooperação podem ser aprofundados para ajudar na solução de problemas vitais como a substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis e a democratização do acesso à digitalização?

O ex-presidente Cavaco e Silva e João Gomes Cravinho, ministro português dos Negócios Estrangeiros, consideraram da maior importância concluir o acordo UE-Mercosul, até porque a guerra aumentou a necessidade de diversificação de mercados. Mas o próprio ex-presidente está entre os realistas/pessimistas que não acreditam na ratificação do bloco de livre comércio pelos parlamentos dos países, pelo menos enquanto houver guerra. O ex-embaixador no Brasil, Francisco Seixas da Costa disse que, com a guerra no leste europeu, o acordo perde relevância porque a Europa (com o acréscimo da Ucrânia) tende a se fechar – “A União Europeia mudou, caminha para se tornar mais unida e menos simpática” -; sem falar da resistência nas esferas agrícola (França e Irlanda) e ambiental (leia-se devastação da Amazônia). E ainda há aqueles que consideraram a proposta de acordo superada frente às demandas nas transições energética (substituição dos combustíveis fósseis) e digital, causadas pela pandemia, pela guerra e pelas mudanças climáticas.

Independente de haver acordo, alguns palestrantes acharam que o Brasil poderá ampliar as exportações de grãos para a Europa para compensar a Ucrânia. O que reforçaria a baixa complementaridade (comércio baseado em petróleo e alguns alimentos) entre os dois países apontada por Cavaco e Silva. Acredita-se que há potencial para um perfil de trocas mais tecnológico e criativo, tendo em conta as transformações econômicas em marcha. De qualquer forma, setores mais atraentes para impulsionar a parceria luso-brasileira parecem ser os de energias renováveis, produtos e equipamentos de saúde, tecnologias digitais, exploração sustentável dos oceanos (economia azul) e infraestrutura. A indústria aeronáutica foi citada como exemplo de sucesso, que tem na unidade da Embraer em Portugal uma ponte com o mercado europeu.  

Aqui ganham papel relevante a educação e a imigração para aprofundar as relações entre os dois países. Aspiram-se ações concretas que facilitem a vida dos imigrantes (em termos de documentos), inclusive os mais qualificados, que queiram trabalhar; a criação de um programa de intercâmbio estudantil equivalente ao europeu Erasmus (bolsa de estudo para os níveis de graduação, mestrado, doutorado e estágio, com a possibilidade de os alunos cursarem até dois semestres em outra universidade e ter uma experiência também cultural); o impulso à cooperação entre universidades no âmbito científico e tecnológico, aproveitando o potencial existente (centros de excelência) e a experiência da pandemia em gerar soluções para resolver problemas concretos e urgentes.

Muito foi dito sobre o papel estratégico da língua portuguesa no futuro. Houve o reconhecimento da importância da CPLP para aumentar as sinergias entre os países da comunidade num ambiente multilateral. Mas para isso é preciso superar a tentação do Brasil em priorizar acordos bilaterais, principalmente com países africanos. Para Marcelo Rebelo de Sousa, é inevitável que no futuro haja cada vez mais uma confluência entre Brasil e Portugal, considerando os traços de relacionamento transatlântico e o mundo de oportunidades que a CPLP oferece por sua dimensão, localização estratégica, por ser “um fórum privilegiado de encontros” e pelas parcerias diversas próprias do multilateralismo - “não é por acaso que as grandes potências do mundo querem ser observadores associados da CPLP”.

Quanto à difusão da língua no mundo, considerou-se que há potencial de parceria entre a experiência de sucesso do Instituto Camões e o recém-criado Instituto Guimarães Rosa (do Itamaraty) – que “já nasce sexagenário” na definição da embaixadora Paula Alves de Souza - para ampliar este trabalho.

Muito se falou em tirar do papel a ideia de parceria estratégica entre os dois países, instituída em 2007. Uma dificuldade é que o Brasil pensa como continente e “grande potência”, na visão do analista internacional Paulo Portas. E a invasão da Ucrânia traz incertezas quanto ao futuro, uma vez que a Europa “está mais autocentrada” e “caminha para se tornar mais unida e menos simpática em relação ao mundo exterior”, segundo Seixas da Costa, embora continue presente o papel de Portugal como “promotor da dinâmica com África e América Latina”. A dúvida é sobre qual será o comportamento do Brasil, como membro dos BRICS (bloco que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), numa situação de agravamento da crise militar com Estados Unidos/Europa e China/Rússia em lados opostos. “Onde ficará o Brasil?”

A única autoridade brasileira presente na conferência foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Notou-se a ausência (justificada) do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Participaram da abertura o coordenador das comemorações dos 200 anos de Independência, Francisco Ribeiro Telles, e o coordenador do grupo de trabalho do bicentenário Gonçalo Mello Mourão, além do embaixador em Portugal Raimundo Carreiro. Entre os palestrantes, encontravam-se a professora de relações internacionais da UERJ, Miriam Gomes Saraiva; o presidente da Academia de Letras, jornalista Merval Pereira; o ex-presidente do BNDES, economista Luciano Coutinho; a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; e o ex-reitor da USP, Vahan Agopyan.

Para quem tiver interesse e disposição, segue a íntegra dos painéis: https://gulbenkian.pt/agenda/brasil-portugal-perspetivas-de-futuro/

 

 

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