Nós somos nós. E os outros? São apenas os outros. Nós, os que sempre temos razão, os melhores, os certos, os impecáveis, os corretos, os espertos e quantos adjetivos haja. E os outros, coitados, os ignorantes, os metidos, os fingidos, os vaidosos, os reacionários, os radicais, os enjoados, os trapaceiros, os exploradores, os invejosos, os sem educação...
Inexoravelmente, vivemos em sociedade. O mais obscuro dos seres humanos, vivendo no mais longínquo dos lugares, não escapa das garras de sua sociedade. Amarrado às leis que garantem a vida nesta sociedade, é-lhe impossível viver sem ela.
As outras espécies também vivem em sociedades, umas mais organizadas (e gregárias, como as formigas, as abelhas, os cupins etc.), outras menos. Mas todas vivem em paz, regidas pelas leis da natureza. Os humanos, evoluindo a partir de sociedades mais organizadas, tornaram-se, através da criação da linguagem, seres racionais e conscientes. Essa “passagem” se deu naturalmente, segundo os cientistas chamados “evolucionistas” (Darwin, Lamarck e outros); para religiões como o judaísmo, o cristianismo e outras, que acreditam no “criacionismo”, essa passagem se deu pela intervenção de um ser superior, um Deus.
Como consequência da capacidade de pensar, raciocinar e ter consciência da existência de si, dos outros e do mundo, os humanos tornaram-se livres para optar entre a prática do bem e a do mal. Por outro lado, o instinto de preservação da espécie e de si mesmos os leva a lutar entre si. Daí advém a competição, as injustiças, as guerras e o ódio.
Dois exemplos, um simples e banal, outro cruel. Basta entrar no trânsito das grandes cidades para o ser humano começar a encarar os motoristas a seu lado como seus inimigos. Por qualquer vacilo você vai ouvir buzinas raivosas, palavrões e gestos obscenos. O cruel e revoltante, vemos quase todos os dias pela televisão: através das câmeras, a frieza e crueldade com que ladrões e bandidos atiram e matam suas vítimas. Serão mesmo seres humanos?
Pelo instinto de nossa espécie, cada um de nós é o guardião de nós mesmos e da sociedade na qual vivemos. Como não podemos escapar da sociedade, criamos um mundo nosso, individualista, que nos faz ver nos outros os nossos inimigos, os que vão nos prejudicar, roubar, chantagear e zombar de nós. Para escapar desses perigos, criamos uma máscara que nos protege, a máscara do fingimento e da mentira.
Fingimos sempre de todas as maneiras. Encontrando-nos com os outros, elogiamos, bajulamos, sorrimos, tentando ostentar laços de amizade; de longe, nós os criticamos, falamos mal deles, denegrimos suas imagens.
Quem não é assim? Quem julga não ser, que “jogue a primeira pedra”, como sentenciou o Cristo àqueles que queriam apedrejar a pecadora. Assim é o dia-a-dia de nossa vida dita “social”, mas que de social, de solidariedade, de atitudes de respeito pouco ou nada tem.
Um exemplo dos nossos dias: durante os nove anos de seu mandato, o senador Demóstenes Torres (ex-DEM, de Goiás) investiu-se da máscara do parlamentar-modelo, do defensor da ética e do rigor contra a corrupção (tendo julgado com rigor réus de CPIs das quais participou). Sua máscara caiu quando, ao serem descobertas suas trapaças, mentiu deslavadamente diante de seus pares.
Essas ideias me fazem lembrar meu saudoso pai, o Góes. Um dia ele foi de Resende Costa a São João del-Rei e lá ouviu um sermão do padre Francisco Gonçalves, o fundador da obra salesiana naquela cidade. Eu era criança e dele ouvia repetir o sábio ensinamento do sermão, que marcou sua vida: “nesta vida somos como viajantes, caminhando um atrás do outro, cada um com seu saco de defeitos nas costas. Só vemos os defeitos dos outros, nunca os nossos”.
É de se perguntar: não seria essa uma visão negativista do mundo e dos humanos? É. É realista? Talvez seja. Se realista, seria possível mudá-la? Acredito que sim.
As religiões (algumas, as sérias, as não enganadoras e não movidas pelo dinheiro) podem contribuir para uma convivência mais harmoniosa nas sociedades humanas, porque ensinam a ética, o respeito, a solidariedade e estimulam a paz. Muitos personagens dessas religiões passaram por esse mundo pregando esses valores. Mas quem passa esses valores às novas gerações é a educação, sobretudo a familiar. Se essa falhar, não adianta o complemento da educação escolar, por melhor que ela seja. Singelamente, é a estória do “é de pequenino que se torce o pepino”. Ou da “cuia que leva pimenta, nunca mais perde o ardume”, da sabedoria popular do saudoso e sempre lembrado Sô Tonico Chalé.
Assim somos nós, esses seres desconhecidos, como definia, no século passado, o biólogo e pensador francês Alexis Carrel, em sua clássica obra “O homem, esse desconhecido”. Nela, parece que ele deixou especialmente para mim o exato pensamento para eu fechar este texto: "Só o amor é capaz de criar nas sociedades humanas a ordem que o instinto estabeleceu há milhares de anos no mundo das formigas e das abelhas”.
Nós e os outros
14 de Maio de 2012, por Rosalvo Pinto