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O debate em torno do “nós pega os peixe” e “os livro ilustrado”

16 de Junho de 2011, por Rosalvo Pinto

Desde 15 de maio passado, estabeleceu-se no país um acalorado debate entre imprensa, Ministério da Educação (MEC) e estudiosos da linguagem. Debate motivado por alguns periódicos que, à busca de sensacionalismos e descartando a ciência e a verdade, passaram a criticar um dos livros didáticos recomendados pelo MEC.

O fato que gerou essa celeuma toda, a partir do dia 11 de maio passado, foi a descoberta, no livro “Por uma Vida Melhor”, de um trecho que trata do tema “variação linguística”. Esse livro, destinado ao ensino do português, foi um dos recomendados pelo MEC para o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA). É bom frisar, de entrada, que a coleção à qual pertence o livro é destinada não a crianças do ensino fundamental, mas a jovens e adultos.

O nosso “grande jornal dos mineiros”, por exemplo, entrou nessa . E volta à carga, agora, na recente edição do dia seis deste mês, trazendo uma página inteira (p. 8) com o título garrafal de “Insegurança na sala de aula”, acompanhado do lide (resumo da notícia) “Polêmica sobre livro de português que considera corretas frases em desacordo com as normas cultas gera desconfiança de alunos quanto à qualidade do material didático”.

Esse resumo já incorre, de cara, em um erro grotesco e tendencioso, ao afirmar que um livro de português considera corretas frases em desacordo com as normas cultas. É de se suspeitar que o repórter que assina a matéria nem sequer tenha ido ao livro para averiguar de que se trata. Se tivesse ido, talvez ele não escrevesse o que escreveu.

O capítulo do livro onde está o problema, sob o título de “Escrever é diferente de falar” tem 17 páginas e, provavelmente, nenhum dos críticos o terá lido. A maior parte do capítulo se ocupa de mostrar que não se pode escrever um texto formal usando a linguagem falada do dia-a-dia. Nessa parte, ensina que é preciso respeitar a concordância e outras regras da variedade culta. O próprio trecho onde estão as frases alardeadas, que ocupa meia página, afirma que se pode falar “os livro” e “nós pega os peixe” em situações específicas, alertando que, se o aluno usar essas formas em contextos formais, sofrerá preconceito linguístico. O escândalo é que a imprensa descontextualizou a frase e condenou, por ela, o livro e o MEC.

Nesse debate nacional evidenciaram-se duas instituições: a Rede Globo e a Editora Abril. Evidenciaram-se pelo festival de besteiras. Claro, para ambas a jogada é meramente financeira, puramente comercial. Lobos travestidos de cordeiros. O ataque da revista VEJA (edição 2219, 1º. de junho), começou na edição 2218, de 25 de maio, avassalador: na “Carta ao leitor” (o editorial, porta-voz da Editora Abril), seguindo-se o artigo da Lya Luft (p.26), outra que deve ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde e, por fim, a desastrada reportagem de Renata Betti e Roberta de Abreu Lima, essa chegando a ser desrespeitosa, para não dizer “escrachada”. Não satisfeita, a VEJA voltou, na edição seguinte (2219), com uma entrevista com o professor Evanildo Bechara, 83, um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (Páginas Amarelas). Dá pena ler o que o “renomado” professor falou na entrevista. Nem vale a pena comentar. É bom que o leitor saiba que a Editora Abril é, hoje, dona de uma das maiores editoras de livros didáticos no Brasil, a Editora Ática. Não é preciso dizer mais nada.

Instituições e estudiosos da linguagem de renome vieram de pronto contestar a veracidade das afirmações da imprensa de que o livro está ensinando “a língua errada” e deixando de ensinar a “língua correta”, entre muitos, a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN).

Apenas um grande argumento põe por terra as afirmações incorretas veiculadas pela imprensa: não existe, em nenhum recanto do planeta, “língua certa” e “língua errada”. Todas as línguas nele existentes prestam-se, com perfeição, para a expressão das necessidades de seus falantes. O que existe nas sociedades humanas são variações, normalmente criadas em função de diferenças de classes sociais e, em algumas dessas sociedades, consideradas mais desenvolvidas, uma variação especial, normalmente imposta pelas classes dominantes, chamada, entre outros nomes, de “norma culta”.

A esse argumento acrescenta-se outro, igualmente fundamental: todas as línguas humanas evoluem com o tempo e estão em constante mutação. Muitos dos fatos hoje impropriamente chamados de “erros” em quaisquer línguas, poderão, posteriormente, ser considerados como formas da norma culta dessas línguas.

Assim, do ponto de vista simplesmente científico, não tem sentido algum dizer que um fulano, ou um grupo ou um povo de determinada região falam (ou escrevem) errado. É sabido que toda criança, ao entrar na escola, já sabe falar o português. Entretanto, em nossa sociedade cruel e injustamente dividida em classes, para que essa criança possa progredir na vida, conseguir empregos, enfim, tornar-se uma cidadã, é necessário que ela aprenda também uma outra variante da língua, a tal da “língua culta”. Se assim não o fizer, ela corre o risco de ser preterida ao procurar um emprego, de não poder ter acesso a muitos bens culturais e mesmo de ser discriminada em muitas situações de sua vida.

“Não vejo problema em discutirmos todas as formas de falar nas escolas, por meio dos livros. Com erros de português, sotaque ou qualquer tipo de diferença acho importante termos acesso aos tipos diferentes. São as maneiras que usamos no dia a dia e não há por que ficarmos presos aos detalhes da norma culta”. Assim se expressou o senhor José Geraldo de Paula, 48, na entrevista ao repórter do Estado de Minas. Ainda bem. Uma peninha que ele talvez ainda esteja influenciado pela expressão “erros de português”, de tão arraigada que ela está entre nós. Mas, ao fim e ao cabo, ele acertou na mosca. Parabéns!

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