Depois de escrever sobre tanta gente, hoje escrevo sobre mim. Também sou filho de Deus. Afinal, no tempero de nosso caráter, todos temos uma pitadinha de narcisismo. Não faz mal, nem é pecado. Na mitologia grega, o belo jovem Narciso, com muita sede após uma caçada, debruçou-se sobre o espelho límpido das águas de uma fonte e se viu. Vendo a própria imagem, apaixonou-se pelo próprio reflexo. Cumprindo a profecia do velho adivinho Tirésias, ele morreu vendo-se. Procurado, encontraram apenas uma delicada flor amarela, cujo centro estava rodeado de pétalas brancas. Era a flor “narciso”. O narcisismo faz parte do nosso aparelho de autodefesa, uma característica básica das espécies, em sua strugle for life, a luta pela vida, conforme ensinou Darwin. Essa luta leva à competição entre as espécies e entre os membros de uma espécie. O esporte é uma das manifestações dessa competição. Quem não quer vencer, ser campeão de alguma coisa?
Mas volto ao meu narcisismo. Em matéria de esporte fui sempre um zero à esquerda. Nunca ganhei nada. Sempre fui a negação de qualquer esporte. Tentei quanto pude, mas nunca passei de um reles tapa-buraco.Desde menino, nas peladinhas com bolas de meia nas ruas de Resende Costa. Depois, já adulto, nos cursos de filosofia e teologia do seminário, esse era o meu drama: em qualquer pelada ou em torneios organizados, jamais fui o preferido, mas sempre o preterido. Trabalhando como professor e educador nos seminários e colégios salesianos, o máximo que ousei foi ser técnico de futebol, mas de meninos. E um técnico que sequer sabia como se chuta uma bola.
As peladas tinham uma forma simples e rápida de organização. Dois dos melhores jogadores assumiam a função de líderes. Tirava-se o par-ou-ímpar para ver qual deles começava a escolher os jogadores. Nesse momento começava minha tortura. Até me escondia de mim mesmo, já sabendo do desfecho da seleção. Um pra lá, outro pra cá e seguia-se a escolha, em grau de performance dos jogadores. O desfecho era previsto: eu era o último a ser escolhido. Humilde e resignadamente entrava em campo.
Às vezes tinha que ouvir o capitão do time me dizer: olha, você entra aí, mas nem precisa chutar a bola. Basta ficar por ali na intermediária, pra lá e pra cá, apenas atrapalhando os adversários. Ou então, de cara eu recebia outra ordem: você vai ser o “alfo”, alfo esquerdo! Mesmo sendo destro, ainda por cima me mandavam para o lado esquerdo. Não ia alterar em nada.
Alfo (half, meio, médio, no inglês) era a posição de meio de campo, à frente dos beques (back) e tendo, entre si, o centeralfo (centre half), uma das posições mais importantes. Lá na frente estavam, na direita e na esquerda, os dois “pontas” e os dois “meias” e no centro, o centefor (centre forward). Naturalmente os alfos tinham seu papel na equipe, mas, no processo de escolha, era para essa posição que eram empurrados os dois últimos escolhidos. Por serem os piores, nem defendiam e nem atacavam. Ficavam zanzando por ali, fazendo número, pois os demais não lhes passavam a bola: sabiam que iriam perdê-la. Ou tomada pelo adversário, ou chutada a esmo, para onde apontasse o dedão do pé, nas peladas descalço, ou, tempos depois, o bico do “kichute”. Consolo desses alfos: pelo menos assistiam à partida de dentro do campo. Preferivelmente sem tocar na bola, porque corriam o risco de serem xingados.
Ao cursar filosofia, no seminário salesiano, uma agravante. Por ser uma congregação religiosa mais conservadora e “fechada”, como se dizia, não era permitido tirar a batina para praticar esportes. Imaginem jogar futebol, basquete, voleibol envergando uma pesada batina preta, por cima da camisa e da calça comprida. Nadar, então, nem pensar. O máximo permitido era enfiar a mão pela abertura do bolso falso da batina, chegar até a barra e puxá-la para cima, travando-a no bolso falso. Se alfos como eu não jogavam nada, pior ainda embaraçados em uma batina!
No curso de teologia, em São Paulo, na década de 60, outra agravante. Entre os quase 100 estudantes de todo o Brasil, havia muitos craques de bola. Ainda se jogava de batina ou, modernizando-se um pouco, de guarda-pó. Para não prejudicar os craques, éramos divididos em três categorias, segundo o desempenho futebolístico de cada um: fifinha, fifa e fifona. Claro que eu era da fifinha, talvez o último entre os piores. Foi o golpe mortal. Depois disso dependurei as chuteiras e abandonei gloriosamente o futebol. Até semanas atrás, quando me chamaram para uma pelada, lá no povoado da Boa Vista. Para fazer número, acabei aceitando. Mas tinha que ser de goleiro. Pelo menos servi para buscar a bola no mato ou no fundo da rede.
(Agradeço à Eloísa Sari, minha sobrinha, a inspiração para este texto. Lá dos EEUU, onde está terminando seu doutorado, por e-mail ela também se queixava de que, “na escola e na universidade ela era sempre a última a ser escolhida pros times de esportes, que muitas vezes preferiam ter menos jogadores do que correr o risco de colocá-la no time”. Mal de muitos, consolo é!)
Peripécias de um perna-de-pau
11 de Outubro de 2011, por Rosalvo Pinto