Puro privilégio: estou aqui, num domingo, sozinho, almoçando no restaurante Irassol, aquela comidinha mineira. Estou lá na mesa do fundo, de costas para todos os demais comensais, propositadamente. A moldura da janela transforma-se num quadro de esfuziante beleza. Enquanto belisco minha cachacinha, cortesia da casa, tiragostando uma carninha de porco, estou de frente para uma paisagem que se abre e se descortina diante dos meus olhos.
Chove. Chuva e sol: “casamento da raposa”, como se dizia antigamente. À minha esquerda, o casario do bairro “Bela Vista”. Ao fundo e à direita, um verdíssimo de sumir de vista. O Bela Vista é um bairro relativamente novo. Está numa pequena elevação, o casario descendo pelas encostas abaixo. Tem até sua igreja. Levanto-me e olho logo abaixo: que pena, vejo apenas os restos que sobraram da antiga “laje da cadeia”.
O casario é multicolorido. Casas, em sua maioria novas, bem pintadas, um tom de alegria. E a curiosidade: a maioria delas parecidas. Obedecem ao “estilo resende-costino”, tal como nossos antepassados portugueses tiveram o seu “estilo manuelino”.
No estilo resendino todas as casas têm três andares: o térreo, normalmente destinado a lojas, oficinas, escritórios; no segundo, a moradia propriamente dita e no terceiro, um espaço amplo com um enorme telhado. Nesse, no dia-a-dia, estendem-se roupas e trabalha-se nos teares e, de vez em quando, festinhas, encontros, churrascos etc.
Nos meus tempos de menino (e lá se vão anos...), ali onde é hoje o Bela Vista, havia apenas o velho campo do glorioso “Expedicionários Futebol Clube”, o orgulho dos resende-costenses. Ficava no terreno da chácara do Manoel Cassiano. E ali acabava a cidade por aquele lado. Vinha o pasto do Ademar Aarão, posteriormente do Chico Carioca. Era onde, nas tardes agradáveis de dezembro e janeiro, muitas famílias íamos catar gabirobas. Bons tempos!
Resende Costa nasceu em cima da uma grande laje. Ao ser batizada, a uns 260 anos atrás, como “Arraial da Lage”, era uma laje só, escrita com “g”. No seu topo, a capela de Nossa Senhora da Penha de França. Com o tempo, a laje foi sendo ocupada pelos moradores. Então, sobraram três pedaços de laje, conhecidas até hoje por “lajes de cima”, “lajes de baixo” e a “(ex)-laje da cadeia, onde estou.
Engrossa a chuva. O ronco surdo e amedrontrador de um trovão escorre pelas lajes e desaparece nas paragens verdes do horizonte.
Mais ao fundo, uma caminhonete sobe, vagarosamente, o “morro da Nega”. Um pedestre, também vagarosamente, sobe pelo meio da rua. O veículo se vê obrigado a contorná-lo. Curiosidade, Resende Costa cresceu, a cidade virou um “colosso de carros” nas ruas, mas o resende-costense ainda vive no passado: tem o hábito de andar no meio da rua. Que se danem os carros.
Lá na linha do horizonte, uma cortina de chuva ocultou a serra, lá pras bandas de Lagoa Dourada.
Outro trovão? Não, agora o barulho é outro: passa em frente ao restaurante um daqueles carros que mais parecem trovões ambulantes pelas ruas da cidade. Dizem que é música... Pode até ser, pois assim como a cidade, também a música mudou.
Resende Costa modernizou-se muito rapidamente. A Cemig, a Copasa e a ligação asfáltica até rodovia MG 383. O êxodo rural, em busca de grandes cidades e depois atraído pelo movimento do artesanato local.
A modernização trouxe os benefícios do desenvolvimento econômico: novos bairros, comércio, construção civil, atendimento de saúde, escolas, empregos. Por outro lado, como qualquer outra cidade desenvolvimentista, vieram os malefícios do trânsito intenso de veículos, que atravessam ruas em alta velocidade, o barulho, o lixo, o incômodo das festas noturnas, a violência, as drogas, as trapalhadas financeiras etc.
Muitas tradições culturais e religiosas desapareceram. O cinema, o teatro (que de tanto em tanto teima em ressurgir...); os cruzeiros decadentes e abandonados; as pequenas cruzes coloridas nas portas das casas, enfeitadas com papel celofane e crepom, na quaresma; os passeios na avenida, os leilões, quermesses e barraquinhas, para angariar dinheiro etc.
A vida religiosa da cidade mudou com as novidades do Concílio Vaticano II (1962-1965) e a abertura para as denominações evangélicas, simplesmente “proibidas” de funcionar no município até meados do século passado.
As mudanças socioeconômicas, culturais e religiosas implicaram mudanças no uso da língua portuguesa. Os choferes viraram motoristas; as jardineiras, ônibus; os “negócios” e armazéns viraram lojas, supermercados; as alfaiatarias, butiques; as vendas, bares e butecos; o Grupo Escolar virou Escola Estadual; os carapinas viraram marceneiros; os ferreiros e os “folheiros” (lembram-se do Manezinho foiero?) viraram serralheiros...
Como poetizava e cantava o Chico Buarque, “o tempo rodou num instante, nas voltas do meu coração ... mas eis que chega a roda-viva e carrega a saudade pra lá...”
Resende Costa: reminiscências e curiosidades
09 de Abril de 2012, por Rosalvo Pinto
Leitor do JL - 14/08/2012
Muito bacana sua narrativa de memórias. Eu que visito Resende Costa desde menininho, pude me familiarizar com algumas coisas que citou e mergulhar na saudade.
Saudações belorizontinas! :)