Não resistindo à tentação, hoje vou fugir de nossa Resende Costa e transportar-me para o povoado dos Ferreiras, no município de São Pedro do Suaçuí, na região leste de Minas, bacia do Rio Doce.
Para quem não sabe, trata-se de uma cidadezinha de umas 4.000 almas, encravada entre montanhas, como aliás, o são quase todas as cidades por onde passei dias atrás. Como de praxe, no fundo das montanhas sempre corre um bom (e perigoso) rio. Cidades gostam de aninhar-se ao lado de rios. São bonitos, oferecem peixes e lazer, são úteis à agricultura e à pecuária. Mas quando resolvem se encher e se enfurecer, é um Deus nos acuda. São Pedro tem o rio Suaçuí Grande (um pouco maior do que o nosso vizinho rio das Mortes) pois, mais abaixo corre o Suaçuí Pequeno, ambos desaguando no Rio Doce, um antes e o outro depois de Governador Valadares.
Para melhor localizar São Pedro para o leitor, a cidade-polo da região é Guanhães. Outras vizinhas, além de São Pedro, são Virginópolis, Virgolândia, Peçanha, São João Evangelista, Santa Maria de Itabira, São José do Jacuri, entre outras.
Dada essa aulinha de geografia, voltemos ao São Miguel do título. O povoado dos Ferreiras (nome de antiga fazenda), situa-se entre São Pedro do Suaçuí e São José do Jacuri. Ali, encrustada na encosta de uma das quatro montanhas que a circundam, situa-se a capelinha de São Miguel. A capelinha é também conhecida como “cemitério dos cedros”, pois ela está no lugar onde era o antigo cemitério do povoado, no passado. O nome do padroeiro - um santo do antigo devocionário português -, é bem sugestivo, pois lá São Miguel parece conviver, em boa paz, com as almas dos que por ali moraram, em seu descanso eterno. E hoje ele acolhe também os vivos, que moram nas redondezas da capela. Seu dia “oficial” é 29 de setembro, mas seus fiéis o festejam com uma missa a cada dia 29, durante o ano.
Eram cinco horas de uma transparente e aprazível tarde, naquele 29 de fevereiro. Ademais, havia naquele dia um motivo a mais a ser comemorado. O recém-nomeado pároco de São Pedro (o padre Dídimo Pereira do Amaral, da congregação salesiana) comemorava seus 18 anos de idade. Isso mesmo, 18 anos, pois ele nasceu no dia 29 de fevereiro, e, portanto, comemora seus aniversários de quatro em quatro anos.
Uma aragem fresca fechava aquele dia calorento de um sol causticante. Subiam lentamente a encosta homens e mulheres. Feições contritas e devotas, passaram entre as múltiplas touceiras de flores coloridas e singelas, no chão batido onde era o cemitério. Tinha-se a impressão de que cada ramada de flores enfeitava um antigo morador. Postaram-se diante da porta da branca capelinha. Os bancos eram toscas peças de madeira roliças, emparelhadas duas a duas, sem encosto, com pés roliços fincadas no chão, formando uma espécie de quadrado. Uma singela mesa improvisava o altar, com sua toalha branca e um círio aceso tremulando à aragem da tarde. Lá dentro, paredes brancas, apenas o São Miguel, que de seu pequeno trono na parede, ao fundo, parecia acolher o padre, seus fiéis, dois visitantes e um cão.
Emocionado com aquela cena, misto de bucólica e sagrada, passei a observar o céu, as montanhas, o sol que ia dourando os topos das montanhas, as pessoas, o silêncio absoluto, os 13 homens presentes, com seus toscos chapéus na mão, faces enrugadas e mãos enrijecidas e grosseiras pelas lides diárias na roça, as vozes afinadas e bonitas das mulheres, que pareciam ecoar nas paragens entre as montanhas, o cão negro, assentado mais cima, ora olhava os presentes, ora fitava absorto o infinito, tal como eu.
A cerimônia da Missa prosseguia, aconchegante e devota. Uma criancinha de seus 8 ou 9 meses, mudava mansamente de colo em colo das 14 mulheres presentes. A leitura do texto bíblico e o singelo sermão do padre Dídimo eram um convite à meditação, ao som do silêncio e da brisa daquele entardecer. No momento da consagração, a hóstia foi calmamente alevantada para os fiéis e para a natureza que a circundava. Cenário de respeito e devoção. Homens e mulheres se apresentaram para a simbólica partilha do pão e do vinho. Confesso que poucas vezes na vida presenciei uma cena e uma ceia como aquela.
Essa era, a meu ver, a verdadeira cena de celebração da eucaristia, pelos membros daquela pequena comunidade rural, reunidos a cada dia 29 de cada mês, sob as bênçãos do Arcanjo São Miguel e Almas.
Dada a bênção final pelo celebrante, ecoou, festivo, o canto do parabéns para o aniversariante.
Antes de se dispersarem, todos os presentes vieram, educada e respeitosamente, apertar as mãos dos dois visitantes, vindos de Belo Horizonte para comemorar o aniversário do seu amigo e colega de seminário. Naquela hora, naquele lugar, naquele cenário respeitoso e encantador, não haveria melhor lugar para aquela comemoração. Descemos. O sol acabava de se esconder. Um dia voltarei a visitar o São Miguel e Almas, na solidão de sua capelinha, prometi para mim mesmo.
São Miguel e Almas
13 de Marco de 2012, por Rosalvo Pinto