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Um dia da caça, outro do caçador?

11 de Novembro de 2011, por Rosalvo Pinto

Ao que se sabe, esse provérbio significa, salvo engano, que na vida perde-se num dia e ganha-se no outro. Ou pode significar também que num dia ganha um, no outro, ganha o outro. Entretanto...

Naquela manhã de Resende Costa, exageradamente límpida, lá pela década de 60, esse provérbio se aplicou de uma maneira complicada e engraçada. O sol já esparramava seus raios, envolventes e quentes. As senhoras Anália, Célia e Laura, irmãs do sô João Silvestre da Silva (conhecido como Nhô da Marica) moravam ali pelas bandas do “Beramuro”, logo abaixo da casa do Cumpadre Benedito Silva.

Ao abrir as janelas que davam para o fundo e para o lado da casa, ali pelas nove horas, deram de cara com um inesperado e asqueroso vizinho. Por certo vindo da capoeira de Nossa Senhora da Penha (uma reserva florestal no coração da cidade), que divisava com os fundos da horta delas. Talvez pela semelhança com um jacaré ou crocodilo, ou mesmo, porque lembrava aqueles amedrontadores dinossauros da época jurássica, elas levaram um tremendo susto. Espichado sobre o muro, a poucos metros da janela, parecia estar tranquilamente dormindo. Sem as tradicionais mentiras de pescadores e caçadores, ele parecia ter um metro de comprimento por dois de sono. Alguns vizinhos e curiosos na rua já estavam também de olho nele. As senhoras, ainda meio esbaforidas, ouviram alguém cochichar: é um tiú, um baita largato (lagarto).

Que fazer? Comentaram baixinho as senhoras, com receio de acordar o bicho. Matar? Mas como? Jogar alguma coisa nele? E se ele virasse contra elas? Foi quando uma delas se lembrou de um vizinho que morava duas casas acima. Aquele que costumava, de vez em quando, passar na rua com uma espingarda no ombro. Deveria ser um caçador. Fiquem de olho no bicho, disse uma delas, enquanto eu vou chamá-lo.

Sem fazer barulho, saiu na rua. Mais curiosos e vários meninos por ali, olhando e aguardando o desfecho daquela curiosa cena. Bateu na porta. Nagibinho abriu, ouviu a história, o pedido e prometeu descer logo para resolver o problema.

Sim, o Nagibinho. Enquanto dorme o tiú, vale lembrar essa figura tão conhecida na cidade no século passado. Nagib Geraldo, seu nome, era filho do Miguel Nagib, libanês da família “Roman” que aqui aportou no início do século 20. Irmão do Sebastião e do Alderico Nagib, era um solteirão inveterado, de muitos amigos. Divertido, era mestre numa piada e fiel organizador das “chácaras do Judas”, nas Semanas Santas. Sua casa era aberta a todos, sobretudo à rapaziada, que gostava de, à noite, jogar um truco e depois fazer e degustar um frango acompanhado de taioba e angu.

Meia hora depois, na sua tradicional calma, desceu o Nagibinho com sua velha espingarda. Essa espingarda tornou-se também protagonista desta estória. Pertenceu ao seu pai e era de tanta estimação que, acredite-se, tinha até um nome, engraçado: “Dona Maroca, não é de venda nem de troca”.

Cônscio da sua responsabilidade para salvar as senhoras daquele apuro e risco, Nagibinho andou pra lá e pra cá, buscando o melhor ângulo de ataque. Não podia falhar. Estava em jogo sua fama de bom caçador e atirador. Tirou de um embornal os apetrechos necessários, espoleta, pólvora, chumbinhos e vareta para socar a pólvora. Caprichou na carga. Ajoelhou com um joelho e direcionou o cano para o alvo. Com um olho fechado e outro aberto, mirou demoradamente. Silêncio absoluto. Ouviu-se um “pá!” seco e chocho e nada mais. A espoleta mascou. E o tiú nem abriu os olhos.

Dizem que tiú não escuta. Seria mesmo verdade? Deve ser, até porque a gente, ao se referir a alguém muito surdo, costuma dizer: fulano é surdo feito tiú! Por essa razão o tiú daquela manhã simplesmente dormia, sem se dar conta da confusão ali por perto. Não terá ouvido o estalo da espoleta. Aumentaram os risos, mas ainda bem que tiú não ouve mesmo.

Sem perder a postura, nosso herói limpou o cano e fez outra recarga. Agora bem mais caprichada. Outro silêncio, outro “pá!” e nada. Mais risos. Já meio sem graça, não quis dar o braço a torcer. Nova carga, essa de rachar o cano. Dedo no gatilho e capricho na mira. Expectativa. Puxou. Ouviu-se um barulhão e uma nuvem de fumaça cobriu atirador, tiú e arredores. Baixada a fumaça lá estava ele, imóvel. Abriu preguiçosamente um olho e, como que querendo gozar a cara do atirador, botou pra fora, meio de banda, uma comprida língua vermelha. Levantou-se, virou-se sobre o muro e, meio rebolativo, calmamente rumou para a capoeira.

Missão cumprida, nosso caçador Nagibinho naquele mesmo dia dependurou sua velha “dona maroca”. Para sempre. E mais, dizem que este tiú vive até hoje, perambulando pela capoeira Nossa Senhora da Penha. Provavelmente botando a língua pra fora e ainda gozando a cara do Nagibinho.

Pelo menos naquela manhã de sol de Resende Costa o dia foi da caça...
 
(Agradeço ao Bacarini a sugestão e o relato da estória. Melhor teria sido se eu o filmasse a sua performance de narrador: memória, precisão, detalhes, empolgação e gesticulação de artista!)

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