Não raro uma pessoa branca diz com naturalidade que já sofreu racismo em algum momento de sua vida. Bem como é comum ouvir dizer, principalmente de um branco, que o sistema de reserva de vagas na universidade para a população negra é racismo. Como tantos outros impropérios, bem fundamentados no seio de uma sociedade racista, a ideia do racismo reverso perversamente permeia as discussões sobre o tema e são uma forma de defesa do branco perante a inevitável constatação de que sim, talvez você também seja racista.
O conceito de raça, antes tratado no âmbito das ciências biológicas, tem um campo semântico e uma dimensão espaço-temporal. Como todo conceito, é historicamente criado e passa por transformações. No Brasil, no começo do século XX, o antropólogo e médico legista Nina Rodrigues se dedicou aos estudos da população negra brasileira com base em conceitos da antropologia criminal. Ele realizava exames legistas em corpos negros, media o tamanho dos crânios, e passou a associar as características genéticas e fenotípicas dos indivíduos com seus comportamentos psicológicos e sociais. Numa ciência considerada avançadíssima para a época, Nina tentou comprovar que a marginalidade do negro estava relacionada à sua genética. Com o avançar dos estudos antropológicos constata-se o óbvio, que o fato de a população negra estar em sua maioria nas regiões periféricas, ocupando os cargos mais baixos e com a maior vulnerabilidade psicossocial se deve à herança escravista que relegou ao negro a marginalidade.
Ainda que ao falarmos de raça não estejamos seguindo a linha biológica e determinista de Nina Rodrigues e tantos outros, este conceito tem sua relevância enquanto um conceito político. O racismo é a hierarquização de níveis intelectuais, culturais, religiosos etc. com base na cor da pele, e é sobretudo um sistema de opressão que demanda relações de poder. Para um branco dizer que já sofreu racismo na vida, alguns contextos históricos teriam que ser invertidos, por exemplo: negros chegariam a Europa com seus navios branqueiros e levariam como escravos milhares de brancos, extraindo dos mesmos toda a sua humanidade. Brancos não seriam representados como protagonistas em novelas, nem seriam o padrão de beleza ideal. Brancos seriam suspeitos segundo a polícia apenas por serem brancos, seriam mortos por serem brancos e a mídia sequer se comoveria por isso. Brancos enfrentariam barreiras para alcançar os cargos mais altos da sociedade apenas por terem a pele clara.
O racismo para o negro é um fato, é cotidiano, é institucional e muito velado. Na USP, a maior universidade da América Latina, apenas 7% dos alunos são negros. Portanto, é possível, sim, afirmar que o branco tem o privilégio de ocupar os outros 93% de vagas. Merecimento? Como pode por exemplo a mulher negra que mora na periferia, que não consegue um bom cargo por não ter a chamada “boa aparência”, que enfrenta a morte diariamente nas vielas, que tem que trabalhar para se sustentar, que estudou em escola pública, concorrer em pé de igualdade com a menina branca que faz cursinho particular? Mesmo dentro das questões de classe, a mulher negra pobre está em maior vulnerabilidade social que uma mulher branca pobre, pois sofre mais que a pobreza, sofre a perversidade do racismo. Mesmo quando uma pessoa negra consegue entrar na universidade, os obstáculos do racismo permanecem, como para conseguir ser aprovado em entrevista para o mestrado ou para um intercâmbio, por exemplo.
Eu poderia citar tantos outros exemplos. Existe uma clara diferença entre sofrer racismo e sofrer preconceito. Mulheres loiras serem chamadas de burras configura uma forma de preconceito, mas as mesmas obviamente não são impedidas de acessar uma série de lugares apenas por serem brancas e loiras. Obviamente, todo preconceito deve ser combatido. No entanto, é preciso diferenciar. O racismo não existe sem a relação de poder. Negros não têm a hegemonia de poder, não têm poder institucional para cometer racismo. Se um negro reproduz uma fala ou atitude racista é porque é conduzido pela própria configuração racista de nossa sociedade a se auto
rejeitar e rejeitar seus iguais.
Então, o papo que alguns brancos usam para deslegitimar o racismo “ah, porque o próprio negro é racista”, não cola. Essa de “racismo reverso” é furada. A História está aí para nos mostrar.