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Existe racismo reverso?

13 de Janeiro de 2016, por Larissa Resende Moreira

Não raro uma pessoa branca diz com naturalidade que já sofreu racismo em algum momento de sua vida. Bem como é comum ouvir dizer, principalmente de um branco, que o sistema de reserva de vagas na universidade para a população negra é racismo. Como tantos outros impropérios, bem fundamentados no seio de uma sociedade racista, a ideia do racismo reverso perversamente permeia as discussões sobre o tema e são uma forma de defesa do branco perante a inevitável constatação de que sim, talvez você também seja racista.

O conceito de raça, antes tratado no âmbito das ciências biológicas, tem um campo semântico e uma dimensão espaço-temporal. Como todo conceito, é historicamente criado e passa por transformações. No Brasil, no começo do século XX, o antropólogo e médico legista Nina Rodrigues se dedicou aos estudos da população negra brasileira com base em conceitos da antropologia criminal.  Ele realizava exames legistas em corpos negros, media o tamanho dos crânios, e passou a associar as características genéticas e fenotípicas dos indivíduos com seus comportamentos psicológicos e sociais. Numa ciência considerada avançadíssima para a época, Nina tentou comprovar que a marginalidade do negro estava relacionada à sua genética. Com o avançar dos estudos antropológicos constata-se o óbvio, que o fato de a população negra estar em sua maioria nas regiões periféricas, ocupando os cargos mais baixos e com a maior vulnerabilidade psicossocial se deve à herança escravista que relegou ao negro a marginalidade.

Ainda que ao falarmos de raça não estejamos seguindo a linha biológica e determinista de Nina Rodrigues e tantos outros, este conceito tem sua relevância enquanto um conceito político. O racismo é a hierarquização de níveis intelectuais, culturais, religiosos etc. com base na cor da pele, e é sobretudo um sistema de opressão que demanda relações de poder. Para um branco dizer que já sofreu racismo na vida, alguns contextos históricos teriam que ser invertidos, por exemplo: negros chegariam a Europa com seus navios branqueiros e levariam como escravos milhares de brancos, extraindo dos mesmos toda a sua humanidade. Brancos não seriam representados como protagonistas em novelas, nem seriam o padrão de beleza ideal. Brancos seriam suspeitos segundo a polícia apenas por serem brancos, seriam mortos por serem brancos e a mídia sequer se comoveria por isso. Brancos enfrentariam barreiras para alcançar os cargos mais altos da sociedade apenas por terem a pele clara.

O racismo para o negro é um fato, é cotidiano, é institucional e muito velado. Na USP, a maior universidade da América Latina, apenas 7% dos alunos são negros. Portanto, é possível, sim, afirmar que o branco tem o privilégio de ocupar os outros 93% de vagas. Merecimento? Como pode por exemplo a mulher negra que mora na periferia, que não consegue um bom cargo por não ter a chamada “boa aparência”, que enfrenta a morte diariamente nas vielas, que tem que trabalhar para se sustentar, que estudou em escola pública, concorrer em pé de igualdade com a menina branca que faz cursinho particular? Mesmo dentro das questões de classe, a mulher negra pobre está em maior vulnerabilidade social que uma mulher branca pobre, pois sofre mais que a pobreza, sofre a perversidade do racismo. Mesmo quando uma pessoa negra consegue entrar na universidade, os obstáculos do racismo permanecem, como para conseguir ser aprovado em entrevista para o mestrado ou para um intercâmbio, por exemplo.

Eu poderia citar tantos outros exemplos. Existe uma clara diferença entre sofrer racismo e sofrer preconceito. Mulheres loiras serem chamadas de burras configura uma forma de preconceito, mas as mesmas obviamente não são impedidas de acessar uma série de lugares apenas por serem brancas e loiras. Obviamente, todo preconceito deve ser combatido. No entanto, é preciso diferenciar. O racismo não existe sem a relação de poder. Negros não têm a hegemonia de poder, não têm poder institucional para cometer racismo. Se um negro reproduz uma fala ou atitude racista é porque é conduzido pela própria configuração racista de nossa sociedade a se auto

rejeitar e rejeitar seus iguais.

 

Então, o papo que alguns brancos usam para deslegitimar o racismo “ah, porque o próprio negro é racista”, não cola. Essa de “racismo reverso” é furada. A História está aí para nos mostrar. 

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