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Conversa de sinos

21 de Marco de 2016, por André Eustáquio

Quando a quaresma se inicia em Resende Costa, costumamos dizer que “o ar muda”. Parece mesmo ser verdade. Após a barulheira do Carnaval, ao meio-dia da Quarta-feira de Cinzas o sino da igreja matriz de Nossa Senhora da Penha inaugura a quaresma, fazendo imperar a mística sensação de serenidade.

Durante quarenta dias, nas quartas e sextas-feiras o sino da matriz dobra três vezes ao longo do dia: ao meio-dia, as 15 e 17h30min e, especialmente nas sextas-feiras à noite, durante a via-sacra. Neste período o sino da igreja de Nossa Senhora do Rosário permanece calado, não há nenhum movimento na torre até o meio-dia do sábado que da início ao Setenário das Dores de Nossa Senhora.

É meio-dia, ouço as primeiras badaladas graves do sino do Rosário. A memória se inquieta e me transporta para o passado. Ainda criança, costumava ficar debruçado na pequenina janela da cozinha da casa de minha avó, esperando para ver o sino do Rosário dobrar. Da janela dava para ver limpidamente a torre da igreja e o sineiro chegando para exercer seu ofício. A expectativa era grande e a ansiedade maior ainda, pois enquanto o sino da matriz não começava o do Rosário ficava em compasso de espera. Eu sabia que apesar da voz grave e potente e de ser maior, o sino do Rosário devia obediência ao da matriz. Do alto da Penha é que se iniciava a conversa.

Enquanto minha avó preparava o café no fogão à lenha e punha os biscoitos na mesa, eu ficava ali esperando ansioso para ouvir o que os sinos tinham a dizer naquela hora. Pontualmente às 15h, o sino da matriz chama o do Rosário para a conversa. A distância não é muito grande – apenas a Praça Mendes de Resende e a Rua Assis Resende separam as duas igrejas - e naqueles idos da década de 1980 os ruídos da rua não atrapalhavam a conversa dos sinos. O papo é simples, porém metódico: o sino da matriz dobra três vezes e após brevíssimo intervalo o do Rosário responde também dobrando três vezes. E assim eles vão dialogando até o sineiro da matriz decidir “embalar o sino”. O do Rosário espera a sua vez de se despedir.

Tempos depois, já mais forte e crescido, saí da janela da casa de minha avó e fui para a torre da igreja do Rosário. Inicialmente, aprendi aos 11 anos a repicar os sinos. A tarefa era mais fácil e não exigia tanta força. Mas o que eu queria mesmo era dobrar o sino que tanto me fascinou na infância. Confesso, porém, que vê-lo soberano na torre ainda causava certo espanto, até que chegou o dia de encarar o desafio.

Aprendi o ofício de sineiro e o exerci durante longos anos, durante os quais consegui compreender o que os sinos conversam entre si. Um diálogo místico ecoa nas torres e traspassa o tempo. Este mesmo tempo que viu a cidade crescer, o número de carros aumentar nas ruas e os ruídos quase sufocar a conversa dos sinos. Mas eles são insistentes e fieis. Quando chega o Setenário das Dores, o sino da matriz convida o seu colega de baixo para uma conversa, que se estende até a quarta-feira santa.

Hoje, nos dias tranquilos, mas não mais silenciosos da quaresma resende-costense, quando o vento que sopra das lajes da uma trégua e os ruídos da rua cessam por parcos segundos, ainda se ouve os sinos conversar. O diálogo permanece o mesmo de tempos remotos: o sino da matriz chama e o do Rosário responde. Falam de fé, de Deus, de quaresma, da vida simples e bonita do interior. E ecoam saudade, muita saudade.

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