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A biblioteca, a rosa e o povo

15 de Maio de 2018, por Evaldo Balbino

Agora em abril comemorou-se em Resende Costa o centenário da Biblioteca Municipal Antônio Gonçalves Pinto. Além de premiações, leituras de poesia, exposição de livros, coquetel, entre outras atividades, o evento contou com a fala da professora Regina Coelho que, citando Mário Quintana, arrazoou sobre as transformações que os livros podem promover nas pessoas.

A nossa biblioteca municipal nasceu em 1918 com a doação do acervo particular de Antônio Gonçalves Pinto. A atitude altruísta do resende-costense fez surgir um espaço que, antes móvel pela cidade, ganhou desde 2008 uma sede definitiva, inaugurada pelo ex-prefeito Gilberto Pinto no Mirante das Lajes de Cima. Nesse espaço alto da cidade, aberto para o horizonte como a dizer mesmo da leitura, o ato de ler nos convida para a expansão vital. Somente quem lê de fato sabe o que são as asas de uma liberdade intelectual e estética que somente os livros podem proporcionar.

Diante das apresentações do ato comemorativo, meus pensamentos foram “voando” para diversas memórias de leitura e de vida. Foram fazendo conexões, links como se diz hoje em dia. Foram se desdobrando em raízes diversas para vários lados, em caules rizomáticos, galhos cruzando-se, folhas e pétalas diversas.

Foi nessa mesma biblioteca, agora uma persona centenária, que eu peguei emprestado A rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade. Isso, lá no final do ano de 1994. Esse livro foi muito especial na minha formação de leitor e escritor. Era a primeira edição, datada de 1945, que 49 anos depois de impressa vinha parar nas minhas mãos leitoras. Uma relíquia!

A capa da brochura era um limiar que fazia convites imensos: sobre o fundo de um salmão discreto, palavras negras se destacavam; o nome do autor bailava no topo; abaixo do título, a palavra “poesia” avisava ao leitor sobre o gênero que seria lido; a casa editora José Olympio grafava-se em escrita cursiva na base. Os atrativos desta soleira não paravam aí. No centro da capa, avultava uma flor gigante, crescida até as alturas, medrada do chão difícil da vida desse homo sapiens, politicus e socialis. Na base da rosa, pessoas de cabeças erguidas, num clamor reunido em comuna, olhares levantados para a vida vegetal e obstinada. O título da obra, cursivo, destacava-se em vermelho sobre a cor salmão: o sangue escorrendo, o grito rubro do povo.

Foi para o vestibular que visitei o Drummond naqueles dias. E não o li por obrigação. Antes aceitei de bom grado o convite feito pela universidade em seu processo seletivo e mais que tudo feito pelo próprio livro de autor que eu conhecia pouco, só de ter lido alguns poemas em livros didáticos.

Mergulhei nos poemas de A rosa do povo durante dias. E até hoje não me esqueço do “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, onde li o silêncio do ator que valia por mil palavras, onde vi os gestos, vi os olhares e até mesmo as palavras do Carlito com sua poderosa voz humana: “Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos. / Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, / crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores [...]”.

E o poema de Drummond cumpria o seu papel estético, político e humano de me transformar, de me educar pela beleza da poesia. Beleza que está nos livros e que posso acionar quando queira, quando meus pés e mãos passeiam por bibliotecas e meus olhos se põem a namorar lombadas e páginas inteiras.

Ideia puxa ideia. No tributo à biblioteca municipal de Resende Costa, também pensei no livro O nome da rosa de Umberto Eco. Aquele em que se fala da biblioteca medieval de um mosteiro beneditino, a qual mantinha em segredo obras apócrifas não aceitas em consenso pela igreja cristã da Idade Média. As páginas dos livros proibidos continham veneno que fazia morrer quem os lia. O autor dos envenenamentos sabia muito bem do “infinito poder das palavras” e, por isso, desencadeou as sucessivas mortes de monges que buscavam as leituras interditas.

Nós, no entanto, não morremos nas leituras. Muito pelo contrário: crescemos como a rosa de Drummond. Lendo, navegamos horizontes amplos, ganhamos poder de asas para ir além do chão que nos prende. E com olhos aquilinos enxergamos, povo insubmisso, mais longe. Vemos dum mirante alto, dum mirante atento e vívido.

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