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A rua descalça

15 de Dezembro de 2016, por Evaldo Balbino

A rua tinha recantos. Descalça, pobre e ao mesmo tempo rica de possibilidades e fantasias. Com a terra à mostra, surgiam estradas para carrinhos de madeira e de plástico, levantava-se poeira densa com pés afoitos nas queimadas e peladas. No pega-bandeira, era um deus-nos-acuda. A Prefeitura, de vez em quando, espalhava cascalho para evitar o barro nos dias de chuva. Davam trabalho as pedrinhas. Tropeços dos dedos que, errando a bola, se machucavam. Vacilações de saltos altos sobre os serezinhos duros e rolantes. Desvios necessários para os carrinhos de meninos com pressa: os seixozinhos eram montanhas a ser transpostas, e os carros tinham que volteá-las porque os garotos ainda não possuíam alta tecnologia para perfurar pedras. E, o que era pior, as pedrinhas dificultavam muitas vezes as partidas de bolinha de gude.

Com a rua em cascalhos, o jeito era buscar pelos passeios das casas, também descalços. Ali a Prefeitura não intervinha, a não ser para ralhar com certos avanços em direção à rua que alguns moradores espertamente tentavam fazer. Ao lado de cercas de taquara ou placas de cimento, a garotada brincava. E havia uma placa, mais lá para baixo no depois da casa do Chicão, em que tinham desenhado o Zico com suas pernas ágeis no futebol. Ficava ao lado de uma porteira que diziam mal-assombrada pelas madrugadas, mas ninguém se importava com isso. O medo era deixado para de noite, quando pela porteira vinham almas de seres sem nome. Vinham lá dos cafundós do pasto do Chicão, bem lá dos fundos mesmo, onde havia bambus enormes, sombras densas, samambaias comestíveis e cobras de asas.

O desenho do Zico era uma graça. Jogador de renome na época, corpo desenvolto inclinando-se no ar para dominar a bola, como que mostrando sua liderança no Flamengo, com vitórias que vinham pelas décadas de 1970 e 1980. Tinha mesmo que ser feito o desenho do atleta, diziam. E não só pela Copa que aconteceria no México (estávamos no ano de 1986), mas também pelas brilhantes participações do esportista nos campeonatos brasileiros de 1980,82,83 e na Seleção Brasileira nas copas da Argentina em 1978 e da Espanha em 1982.

Era ao lado daquela placa que os meninos mais gostavam de jogar suas partidas de bolinha de gude. A presença do jogador rubro-negro carioca dava mais força aos concorrentes, que lutavam por acertar as birocas e “matar” as bolinhas dos colegas. “Matar” e arrematar, que as coleções de cada um não podiam diminuir, mas antes deveriam aumentar ad infinitum. E com orgulho cada participante andava pela rua descalça com seu saquinho transparente cheio de bolinhas. Os saquinhos eram surrupiados das despensas paternas, pois tinham vindo das vendas e mercados embalando mercadorias diversas. Da nobre função de embalar víveres, as embalagens de plástico passavam à nobilíssima tarefa de guardar as bolinhas compradas e as angariadas em conquistas às vezes honestas e noutras não.

E as batalhas se mostravam cada vez mais difíceis. Na terra vermelha dos passeios descalços, nem cimento nem ladrilho nem cerâmica. Tudo era poeira sob pés encardidos, que chinelas não eram bem-vindas naquelas horas. Os dedos dos pés plantavam raízes no chão. De cócoras, os meninos mostravam destreza com o indicador e o polegar arremessando as bolotinhas de vidro em direção a cada um dos quatro buraquinhos feitos no chão, sempre no desejo de acertá-los todos para depois avançar contra as bolinhas dos inimigos. “Perder a vez”, nunca! Ganhar, sempre!

E os olhos cresciam mais era sobre as bolinhas raras, as que pareciam pedras valiosas. A miríade de cores e brilhos em cristalizações fazia os olhos cintilarem. As bolinhas transparentes, com um tom azulado no centro, mostravam-se as mais cobiçadas. Eram arremedos de topázio azul, água-marinha, lápis-lazúli e outros azuis profundos, para lembrar aqui o belo poema de Henriqueta Lisboa, “Azul profundo”. Nessa poesia, temos as sensações de infinidade e ao mesmo tempo pequenez do homem diante da vida em sua imensidão: “Ó tesouro desconhecido / por toda a eternidade! // Ó luz da solidão, / ó nostalgia, ó Deus!”.

Temos nostalgia sempre. Uma lembrança azul. Do que foi e do que virá. E também do que é, pois é no agora que tentamos abraçar (e faço isso escrevendo esta crônica) o que corre o risco de fugir de todos nós: a vida, sua beleza, sua memória e seu porvir. Participar daqueles jogos (escrevo agora) era buscar por gemas cheias de vida, joias e pedras preciosas em rua descalça e rica como a própria existência.

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