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A Terra também se encherá de luz

12 de Abril de 2020, por Evaldo Balbino

O silêncio da noite é escuro e solidão. Um ruído ou outro se escuta, mas agora Belo Horizonte está sonolenta, um sono de quarenta anos no deserto. Um sono forçado em meio à pandemia de COVID-19, que assola o Brasil e o mundo. A areia é longa e árida, e o calor estende-se para longe, lá onde se podem ver oásis de vez em quando.

O horizonte não tem vozes. O céu de poucas nuvens também não mostra estrelas. E a Lua vaga pelo espaço imenso e vazio.

Cadê os bares, os risos, as pessoas conversando, namorando, tomando um drink e brindando a vida para sempre?

Cadê a Avenida Antônio Carlos movimentada, com os carros poluindo o impossível ar em nossas narinas?

Cadê as pessoas andando com os seus quefazeres infindáveis?

Cadê aquelas senhoras e aqueles senhores fazendo sua caminhada de todo dia? Estou com saudade daquela senhora aqui do lado, aquela dona cuja língua é longa e elétrica. E agora não a estou vendo; não a ouço mais debulhar vidas alheias. Possivelmente esteja neste momento debulhando seu rosário em casa, pedindo por si e por todos.

Cadê os moradores de rua (morando nela porque na vida passaram por processos de exclusão) que antes pediam comida, dinheiro ou qualquer outra coisa?

Cadê aquele cara, também morador de rua, que sempre ficava ali perto da lotérica na esquina, e que pedia centavos e ainda fazia questão de dizer que era para beber uma cachaça?

Cadê os gatos se amando de noite e vizinhos reclamando dos barulhos de amor? Cadê os ruídos de amor entre as próprias pessoas? Já não escuto mais o ranger de camas em outros apartamentos, pois estamos todos apartados de tudo.

Cadê a noite em si mesma existindo, cálida como sempre o foi em Belo Horizonte?

Cadê o homem com o seu pregão da pamonha ou dos tantos ovos por dez reais?

Cadê o rapaz da bicicleta, pedalando esperto e passando por nós com a imensa cesta de pães que ele vende para ganhar seu pão de cada dia e que nós compramos para matar nossa fome?

Cadê a moça da outra esquina, a que já não mais vende as flores para olhos que as cheiram de gula e de amor?

Onde está a cadela que virava e mexia brotava na rua, já parida e com tetas caudalosas, exibindo a todos nós que já era mãe mais uma vez e que deveríamos alimentá-la para que suas crias tivessem leite?

Onde o ônibus da minha rua, antes passando cheio de pernas e braços felizes ou cansados, e agora pouco passando, quase nada?

Onde as luzes de carros ofuscando meus olhos aqui na janela do meu prédio?

Cadê aqueles momentos de caraoquê, quando nossos ouvidos sempre reclamavam dos intratáveis candidatos a cantores? Agora quero ouvi-los a todos, a todas aquelas vozes de taquara rachada, indecisas entre acompanhar a melodia ou então ler gaguejando a letra da música na tela. E um descompasso gostoso entre a voz que cantava e a música e a letra.... tudo um fuzuê danado.

Lembro certa vez uma garota num caraoquê cantando “Porto solidão”, e eu ficando sem ar com voz tão bonita e potente, ela alçando ares como o fazia a voz do Jessé. Alçando ares e singrando mares: “Meu coração, a calma de um mar / Que guarda tamanhos segredos / De versos naufragados e sem tempo // Rimas de ventos e velas / Vida que vem e que vai / A solidão que fica e entra / Me arremessando contra o cais...”.

Da minha janela vejo agora o silêncio. Nem canto, nem prece, nem nada.

Da minha janela sinto a noite com medo e escondida. Pobre noite! Pobres olhos que a namoram!

Da minha janela ouço a solidão...

E de repente uma ambulância passa ali na avenida, rápida e barulhenta. Ela é rês perdida no campo sem flores. Ou melhor, é ovelha rápida indo guiar um pastor tresmalhado em algum canto desta cidade.

De novo o silêncio me atravessa, como atravessa esta noite em mim. E vou conversando com o escuro, silenciosamente.

Mas esperem... Agora escuto algo novamente! Sim, escuto! Um ranger de caminhão, vozes de rapazes enfeitando o lusco-fusco. São eles, os garis que tanto nos ajudam. Os garis que, como tantos outros profissionais, cuidam da nossa cidade. E escuto metais tinindo, garrafas se chocando, alguns cães ladrando como a proteger as casas dormidas. Escuto sacolas de lixo sendo jogadas na carroceria compactadora do veículo. Os garis vão limpando tudo, os restos de nossa vida trancada em meio a esta pandemia.

Agora passa um carro numa rua aqui perto, tocando música alta, buscando acordar a vida. É um funk solitário e solidário.

Cadê a solidariedade? Sei que ela existe, mesmo que agora guardando distância, fugindo de espirros, eximindo-se de toques em corpos alheios.

Olho para o céu sem estrelas e percebo que a Lua é hoje quarto crescente. E vejo um beijo que ela agora está dando numa nuvem errante pelo espaço. As duas bem juntinhas. Sinto esse beijo aqui em mim, e sei que o satélite da Terra vai crescendo até ficar cheio, feliz, pleno. A Terra também se encherá de luz.

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