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Caminhada de mãe e filho

11 de Outubro de 2017, por Evaldo Balbino

Ilustração Elimar do Carmo

Lino sobe com a mãe pela cidade. Vão buscar o pente de tear que dona Lucília fez. E o menino vai feliz. Quer ajudar no carregamento daquela peça cheia de palitinhos de bambu fincados ao longo de duas réguas paralelas de madeira. Entre os palitinhos passam fios que se cruzam com tiras de retalho e fazem nascer tecidos, quenturas para os frios das pessoas e beleza para todas as vidas carentes de beleza. Não querendo deixar o garoto sozinho em casa, a mãe o leva consigo, protetora.

Depois do Largo do Rosário com suas majestosas árvores, os dois passam defronte da delegacia de polícia. E o medo de sempre da cadeia, palavra forte e opressora. Dizem que somente as pessoas más é que vão parar ali, mas o vislumbre de se prender alguém como se prende na gaiola um pássaro deixa ressabiado o menino. Asas são para voos; corpos pedem passagem para a liberdade da vida. E uma cadeia prende essa liberdade, ata-a com nó desumano, rijo, apertado e impiedoso.

Ambos caminham agora pela avenida central, e a porta austera dando entrada sombria para um corredor que leva ao consultório odontológico do Antônio Resende. As paredes caiadas de branco, um cheiro de flúor que atravessa as narinas, os poros da pele, os medos das pessoas diante do barulho de um aparelho polindo dentes ou do bisturi rasgando a gengiva, buscando pela dor a saúde de uma boca ávida de vida. No centro de tudo uma cadeira grande, reclinável, onde se pode, mesmo sofrendo, sonhar com um sorriso mais limpo, uma vontade de beijo e falas longas e claras, sem peia nenhuma.

Mais adiante, depois da Limpadeira do Vantuir, o encontro. A mãe para com uma pessoa e entabulam uma conversa. É o monsenhor Nélson. Amenidades se trocam sobre a tarde que se estende num vento lerdo e calmo, sobre pessoas que faleceram recentemente, sobre a vida mesma ao rés-do-chão. Comentam até sobre os dias longos que se tecem, mas que mesmo assim são curtos para tanta coisa a se fazer.

O garoto fica olhando intrigado para o padre, esperando da mãe uma explicação do que ele não entende. Como os dois adultos continuam conversando num esquecimento da existência dele, seu corpo infantil, então, resolve alardear sua presença. E entra na conversa alheia, fazendo-se comparte daquele encontro, querendo indagar sobre coisa muito importante. E comenta sem receios: “Mãe, nunca vi mulher de cabelo raspado e com voz de homem!!”.

A genitora sofre de vergonha. O rosto queima e não titubeia na decisão de ralhar com o filho. Vai logo chamando atenção de sua cria. Sem violência, sem agressão física. Mas com autoridade.

O monsenhor, amável, lento, paciente. Sorri para o garoto, afaga-lhe a cabeça indomável e lhe sorri também com as mãos. Em seguida diz à mãe que ela precisa ter mais atenção com a vida religiosa da família, levar mais os filhos à igreja.

A mulher pede desculpas e concorda com as palavras conselheiras. O padre avança em sua caminhada, sem saber que a mãe leva o menino sim, e muito, para a igreja. Contudo não é um templo com homens vestindo batinas ou batas. O que o garoto sempre vê são homens de terno e gravata, faça sol ou chuva. Um terno de fazer suar um pobre corpo no calor dos trópicos.

Então a mãe continua com seu filho na direção da Praça Professora Rosa Soares Penido. Vão para o Canela, lá onde mora dona Lucília, a fabricadora de pentes de tear. E vai explicando ao garoto quem é aquele homem, fala da sua importância para a cidade e para os fiéis que ele pastoreia. E diz também do uso da batina, do que representa toda aquela compostura de um homem que fala em nome de Deus. “Mas ele também sua, mãe?” – interroga o garoto, querendo saber e se mostrando importante por não ter dito “soa” como muitas vezes dissera e sofrera risos de pessoas que se achavam mais sabidas do que ele.

A mulher não entende o porquê da pergunta e o questiona sobre ela. “Aquela batina parece ser quente”, responde o filho. Rindo bem alto, com vontade mesmo, a mãe diz que sim, que o padre sua, é ser humano como todo mundo.

Numa careta, então, Lino reafirma sua ideia de ser aquilo tudo muito chato. Pra que terno e gravata, pra que batina e sapatos duros e fechados num mundo onde o Sol derrete seu fogo sobre as pessoas? Isso não é certo. Isso também é cadeia, é prender as pessoas numas grades duras, de ferro. Pensa essas coisas, porém não diz mais nada. Só vai pensando rua abaixo até o Canela. Pensando um pensamento longo, largo como os fios da vida.

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