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Castelos de barro

13 de Novembro de 2018, por Evaldo Balbino

A nossa arte tinha muitas artimanhas. Gestos, palavras, peraltices. Mas havia uma arte também inigualável, sui generis nas nossas bandas infantis do povoado do Ribeirão de Santo Antônio. Era com as mãos que a fazíamos. Com a mente indo por veredas, com as mãos ávidas de criar. Era de tabatinga que buscávamos fazer mundos possíveis num mundo cheio de impossibilidades.

As panelas eram talhadas com cuidado, pois dar-lhes forma era coisa difícil. Já as colheres eram barrinhas mal desenhadas. E os bonecos, ai dos bonecos, esses se faziam desconjuntados: uma barra meio achatada era tronco inerte, cilindros disformes eram membros mais ou menos perfeitos, uma bolotinha mais encima tinha grãos de feijão para compor a fisionomia do rosto – pretos para olhos e nariz, roxinhos para boca que não se abria. Aviões fazíamos vários: não voavam, mas volitávamos por eles. Bois ali não eram mais de sabugo, mas barro secando pelos cantos para compor juntas de primeira linha nas cangas. Os bois de tabatinga eram até mais fortes que os de espiga nua; eram pesados e aguentavam o tranco. Carrinhos de boi, ovelhas tresmalhadas ou não, cenários nascidos da terra branca e úmida – tudo nos dava ares de deuses criando a vida.

O que fazíamos com mais e mais esmero eram os nossos castelos. De barro e não de areia. Não tínhamos praias, dessas com ondas revolvendo-se, com areia margeando águas desinquietas, com gaivotas fazendo voos rasantes sobre as nossas cabeças líquidas e sobre a água pensativa. Não, não as tínhamos. As praias vistas em livros, e que seriam namoradas mais depois nas telas de tevê, não eram vistas de fato por nós. Tínhamos, então, que imaginar outras possibilidades, outro chão para apoiar nossos pés pequenos e peregrinos. Assim, nossos castelos eram de barro erguido à beira de córregos lentos ou perto de correnteza forte. Barro branco e grudento ganhando forma em nossas mãos que o viam com gosto de criador amando criatura.

E os nossos paços eram imponentes. Dávamos passos largos entre seus umbrais, abóbadas imensas de nos perder. Andávamos nos seus interiores como num mundo vasto. As pontes de acesso a eles não eram levadiças, ficavam eternamente paradas sobre pocinhas d’água fazendo pose de lagos. Circundados de água e monstros aquáticos, seus muros se faziam altos na espera de guerras. Seus alicerces e torres altíssimas, as janelas opacas mas abertas para o mundo, a sala de armas, a casa pública de banho, o pátio para os infantes brincarem, os jardins não suspensos (mas suspendendo olhares por tanta beleza), os corredores e as escadas sem fim, a cozinha e as guloseimas vindas das terras no entorno, os quartos e os sonhos dos moradores, a sala real com seu trono onde todos podíamos ser agora e para sempre reis e rainhas em sua pompa.

De barro e não de areia construíamos os nossos castelos. E a lembrança da parábola de Cristo. As casas edificadas sobre a areia aérea. O vento, a tempestade, as fúrias da vida derrubando tais casas. E também os sábios que sobre a rocha ergueram suas moradas, sólidas como as bases em que se assentaram. E sobre tamanha solidez, uma existência inabalável, a memória do hino ouvido e nunca esquecido: “Sábio e prudente será o varão / Que a casa na rocha erguer; / Sempre terá eficaz proteção, / Pois nada a pode abater. / [...] / Quem sobre a areia quiser construir, / Em vão trabalhado terá, / Pois sua casa virá a cair; / Em falso alicerce estará”. E em mim até hoje a bíblica e hínica lição, lida e cantada e ouvida desde sempre, de que a rocha é Cristo, o filho de Deus: o fundamento eterno de quem busca a glória das coisas que não morrem.

E não morrem os castelos de tabatinga. Argila ardendo na memória. Argamassa de uma brancura a ponto de doerem os olhos. Dizem que o branco é mistura de todas as cores-luz. E multicolorido era tudo. Castelos brancos, mas morando neles todas as cores-luz do mundo, todas as vontades de pequenas e eternas crianças. Candeias acesas a noite inteira. Claridade que nunca se apaga e que fica eterna nestas palavras. Escrever é manter acesa a lâmpada da vida que carregamos.

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