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Dona Eliana

18 de Julho de 2018, por Evaldo Balbino

Agora a coisa parecia mais ajuizada. Víamos a 3ª série como o início de um caminho cujo cimo se daria no final da 4ª. Em menos de dois anos e os aprovados adentraríamos a 5ª. Na nossa cabeça, a época da alfabetização tinha ficado para trás. Talvez essa sensação fosse só minha, eu não sei, e o que sempre fiz, tanto lá quanto agora, é achar que todos a tínhamos.

Ir para o ginásio era novidade lá em casa. Ninguém dos meus tinha continuado os estudos para além dos primeiros quatro anos de escolarização. E isso só aumentava ainda mais o meu compromisso de construir adiante uma trilha que os meus não tinham edificado.

A seriedade aumentou ainda mais para nós logo no início da 3ª série, a partir do momento em que ninguém ousou chamar a nossa nova professora de tia. Era “dona Eliana” e ponto final. E foi ela que lecionou para nós durante os dois anos, 1986 e 1987, ou seja, 3ª e 4ª séries.

Quase sempre de calças compridas e cabelos loiros partidos ao meio, ela entrava com livros, papéis e o caderno de planejamento de aulas seguro pelo braço direito rente ao peito. Enquanto fazíamos exercícios, suas mãos escondiam-se nos bolsos das calças e seus olhos passeavam junto com o corpo pela turma, ajudando-nos nas atividades, mas também nos coriscando ralhos quando ousávamos fazer baderna.

Ela de fato era muito séria. Mas com que competência dava as aulas! Ensinava as lições e cobrava de todos nós dedicação aos estudos. Nos rastros dessa seriedade, fui emaranhando ainda mais a minha existência a livros e Escola.

Eu gostava muito dos Estudos Sociais. A mestra nos levava pontos sobre história do Brasil, os “vultos” da pátria, e me lembro de ter-me apaixonado com a imagem dum Anchieta escrevendo nas areias da praia.

Nas aulas de Ciências, estudávamos os animais, as plantas, a natureza. Meus olhos brilharam mesmo foi quando colei no caderno aquele desenho do esqueleto humano. Um esqueleto sem sorriso, mas finamente dividido em crânio, escápula, coluna vertebral, braço, antebraço, dedos, fêmur, rótula (na época a patela se chamava assim), tíbia, tarso, metatarso e dedos.

Na Matemática eu ia avançando. Gostava dos conjuntos, da união e do pertencimento. Hachurar os encontros entre conjuntos diversos me dava felicidade, a ideia de ligação entre os mundos. A Álgebra me amedrontava, principalmente quando vinha em fórmulas secas, lacônicas. Já com os problemas que se faziam em palavras para, a partir delas, eu ir compondo as fórmulas, aí sim eu me situava, me sentia em casa. Com as palavras eu me dava bem.

O que dizer, então, das aulas de Português? A conjugação dos verbos, o estudo das classes de palavras e o sabor de juntá-las em grupos, brincar com elas, entendê-las melhor.

Nas aulas de leitura, um paraíso. A Narizinho de Monteiro Lobato, A fada que tinha ideias de Fernanda Lopes de Almeida, a lenda da vitória-régia contada por Henriqueta Lisboa, A ilha perdida de Maria José Dupré, O menino mágico de Raquel de Queiroz, fábulas de Esopo, O papagaio Tubiba de Bárbara Vasconcelos de Carvalho, O Elefante Basílio de Erico Veríssimo, cantigas de roda, o Walmir Ayala com o seu Histórias dos índios do Brasil, A vaca voadora de Edy Lima, Alice no país das maravilhas de Lewis Carroll, os mistérios do fundo do mar com Lúcia Machado de Almeida... E muitos, muitos outros textos fazendo meu mundo expandir-se para horizontes sem fim.

Ainda falando nas leituras, não esqueço a letra do samba “Zelão”, de Sérgio Ricardo. Nesse poema, os versos “Ninguém riu nem brincou / E era Carnaval” me tocaram fundo, já me mostrando naquela época o poder das palavras de um certo modo agrupadas. No fechamento da música, a antítese mostrando a dor de Zelão e de todos os pobres que sempre lutaram nos morros das grandes cidades.

Num mês de junho daqueles dois anos, pois não me lembro se foi na 3ª ou na 4ª série, dona Eliana nos ensinava no quadro a fazer uma redação bem ordenada. Era sobre a Festa Junina que se aproximava. Deu-nos um desenho de uma linda fogueira sob bandeirolas, e ia escrevendo na lousa o passo a passo do texto. Aí ela escreveu “A fogueira crepitava no terreiro.” Aquela frase me agarrou com braços fortes e quentes, me fez colorir o desenho e escrever o texto com muito afeto. Até hoje crepito de amor entre palavras.

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