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Geografia entre brumas

15 de Setembro de 2017, por Evaldo Balbino

Ilustração Elimar do Carmo

Hoje me deu uma saudade danada. Dessas que não se explicam, mas que nos tomam de um jeito inopinado, sem mais nem menos. Saudade dos inícios de minha vida. Mas nada de apenas cantar o passado, nada de ver nele somente várzea e ar amigo, raízes lindas e verdes de fazer o hoje secar-se como palha seca. Não. Nada disso.

Lá eu via pessoas, bichos, plantas e coisas. Todos lindos, mas também sofridos. Cada uma vivendo do seu jeito, nas alegrias e dores do existir. As pedras caladas, sentindo. O sol se indo do outro lado das planícies, bem para lá das lajes, o miradouro de pedra. Cachorros de rua ou não, que muitos deles, mesmo morando em casas, vagabundam pela rua sem destino, numa liberdade de fazer gosto, mas também numa judiação de dar dó. É que muitos males grassam pelas ruas: pouca comida, lixo estragado, pés humanos sem piedade, carros que atropelam e seguem seu rumo sem ajudar o corpinho estendido no chão.

E as pessoas pelas ruas poucas, tortas, ora subindo, ora descendo. E no andar uma vagareza da vida, ou então uma pressa também vital, porque às vezes saímos atrasados de casa e temos que correr, andar a passos largos, mesmo não havendo lotações e trânsito difícil.

O Tijuco era a porta primeira da minha entrada na vila. Nome mais velho, primogênito. Hoje já é outro. Os nomes mudam, meu Jesus! Temos a necessidade forte de cambiar. Renomear se parece com reviver.

Na Várzea eu assentei meus pés. As matas não tinham fim. O eucaliptal levava até a casa da Dinha, com direito a encontros terríveis e atraentes: uma cobra ancestral morando perto da Fonte da Ia e a alma penada de um homem, antigo morador daquelas bandas, quase sempre esperando em cima da pinguela. Mas esse homem esperava não era para fazer mal nenhum. Ele só desejava mesmo era ter companhia, a certeza de que na vida, mesmo morta, não existe solidão plena. Nem mesmo a cobra era má, assim na essência. Podia até morder se fosse necessário. Ela ficava escondida numas lajotas e só ia na Fonte da Ia para beber água, fios de vida. Podia ser até bonita a serpe! Secular, antiga como as raízes de nossos medos e sonhos. Antiga e boa, creio. Eu, porém, é que nunca queria vê-la. Só de ouvir falar dela já bastava. A palavra não é a coisa, graças a Deus!

Depois a Nova Resende, antes chamada Serra do Urubu. A Rua Sete subindo, e os dois cemitérios em silêncio entre muros. Sibilinos e traiçoeiros. A Rua Sete me levando para a morte inevitável, mas a Rua do Rosário me salvando do escuro, me fazendo olhar para o alto, para as nuvens remidoras.

O Beramuro era desconhecido. Fui lá só uma vez, numa reserva florestal linda, para namorar bichos e árvores.

No Expedicionários a Escola Conjurados, o prédio me esperando para um mergulho sem fim nas letras, nas ciências.

O Centro vivia também em quietude. Os Quatro-Cantos eram quatro olhos vendo tudo.  A Escola Assis Resende, edifício antigo, pomposo para mim, também existindo para abrir meus olhos.

O Canela mais para baixo, nuns desejos de fuga da cidadezinha. Lá eu via uma igrejinha cujo nome era bíblico e me transportava para a antiga Filadélfia. Mas tinha o Asilo, nome hoje não aceitável, mas que não deixava de ser asilo.

A estrada de terra, mais lá embaixo, saindo para o Varginha, para o Morro das Pedras, para o Barracão que até hoje ainda não conheço.

O asfalto levando para bandas que eu não sabia. E um desejo grande, naquela época, de que o mundo inteiro me chegasse pela estrada asfaltada através dos mensageiros ônibus e caminhões. Naqueles anos eu não pensava em aviões, que eram apenas cruzes passando vez em quando pelo céu.

Lá na várzea, meus pés plantados. A terra vermelha do chão virando barro em dias de chuva, as piteiras cercando a chácara da dona Trindade e contendo as assombrações pousadas em goiabeiras e mangueiras. Só de vez em quando aquelas aparições desciam das árvores e andavam meio que levitando, bem perto do chão, pelas ruas da minha infância. É que a criançada, numa algazarra celestial dos infernos, espantava as pobres almas penadas. Nem depois de saírem da matéria morrível (este corpo cansado, vaso feito para quebrar-se), as almas vagantes tinham sossego. Criança é bulício, e morto quer sossego.

Eu, no entanto, não estou morto ainda. Por isso não quero e não posso sossegar. Os nevoeiros vão aumentando, que eles não faltam em muitas madrugadas da minha cidadezinha. A neblina, a poética e bela bruma, vai se adensando com o tempo. Mas eu construo visões de memória e palavra. Ando através da cerração que não cerra meus olhos.

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