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Irmã Maria do Geraldo do João

15 de Outubro de 2019, por Evaldo Balbino

Passos lentos e tranquilos, suas pernas vinham serenas numa idade de histórias para contar. E ela as contava com calma, a boca levemente espumando, mas tendo paciência no dizer de passados, presentes e futuros. E era mais dos incognoscíveis futuros que dizia, daqueles a que São Paulo nos fala na carta aos Hebreus: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”. E ela esperava por um mundo melhor, mais paradisíaco do que o antigo Éden onde o homem e a mulher perderam sua inocência e passaram a sofrer pelos discernimentos adquiridos.

Chegava à pequena igreja, subia os degraus, entrava pela porta esquerda e saudava o porteiro com a mão direita estendida. No punho fechado ia discretamente uma oferta para o templo (que a mão direita não veja o que oferta a esquerda), e assim biblicamente cooperava com a obra da piedade na ajuda aos carentes, com as construções, com a manutenção da igreja nos seus produtos de limpeza, água, luz, pintura etc. Não para pagar faxineiros, que todos ali obravam  voluntariamente. Dava a oferta, dizendo ao mesmo tempo um “A paz de Deus!” silencioso e na sequência nomeando a que se propunha sua oblata. Em seguida não faltavam, é claro, pedidos de oração a serem marcados no bloco de folhas pousado na mão esquerda do porteiro, bloco esse que era entregue ao cooperador lá no púlpito ao final do 3º hino entoado pelos fiéis, no momento exato da 1ª oração conjunta da igreja. Na maioria da vezes, ela fazia todos os rogos, que muitas eram as necessidades: as suas, as da família espalhada pelo mundo e as do próprio mundo. Enfermidade, causa, família, viagem, acidentados, atribulados e testemunhados da obra de Deus. Um “x” era marcado em cada quadrinho correspondente a cada um desses itens. E como outras pessoas também faziam súplicas além das suas, a mesma caneta fazia a marcação “n” vezes nos mesmos pontos, a ponto de quase furar o papel do bloco.

Saudava à distância os irmãos mais próximos sentados à direita e às irmãs mais próximas sentadas à esquerda. A essas fazia-o com o ósculo santo, biblicamente prescrito. Na igreja era assim: homens dum lado e mulheres doutro. Elas com as cabeças sob véus brancos ou meio diáfanos, alguns com rendas, outros sem.

Já brancos e meio cinéreos, os cabelos da irmã Maria arrebanhavam-se para trás num rabo de cavalo e, dentro da igreja, cobriam-se por um véu branco e opaco. De joelhos prostrados e calejados, fazia sua oração em silêncio. Depois levantava-se e, sentada, lia em silêncio trechos da Bíblia.

Iniciado o culto, era ela corriqueira no pedir hinos. Assim que o cooperador anunciava que podiam “chamar um hino”, lá vinha a irmã Maria quase sempre solicitando o “Grandioso és tu”. E sua boca tremeluzia e os olhos diziam com sentimento os versos da música incensada a Deus: “A ti devemos nossa gratidão, / Grandioso és Tu, Senhor Jesus; / Tu nos tiraste da escravidão, / Grandioso és tu, Senhor Jesus.”

Certa vez eu mostrei-lhe esse mesmo hino, porém num hinário de língua espanhola, presente já bem surrado que me dera um amigo. Era uma tradução de 1975 do português ao espanhol para uso em países de fala hispânica. Meu amor pela língua já acontecia nessa época; e, somando-se a esse amor, eu via o apego da irmã a tal hino. Cantei-o aos seus ouvidos amantes das coisas divinas e após isso lhe perguntei se gostara. “É até bonito”, disse-me com franqueza, “mas isso aí de dizer” – e foi apontando o dedo no primeiro verso da canção espanhola – “‘Grande eres Tú, Jesús, Rey verdadero’ é muito fraco”. Como assim fraco, perguntei. “Na nossa língua é melhor: ‘Grandioso és Tu, Jesus, Rei da verdade’. ‘Da verdade’ é mais verdadeiro, mais forte do que só esse ‘verdadero’ aí. Num acha não?”. Acabei concordando. Pensei em aclarar que em espanhol tinha que ser “verdadero” para dar métrica ao texto e para rimar com “madero” de outro verso. Mas vi na hora que essas explicações seriam nímias diante do argumento fervoroso e da percepção dela em relação à força das palavras.

No findar do culto, seu hino preferido era de regra “O santo culto vai findar”, em cujo arremate vinham os dizeres: “Se não nos virmos mais aqui, / Nós nos veremos lá nos céus...”. E um dia, de fato, não a vimos mais na igreja. Foi para os céus, certamente cantando, tremeluzindo a boca e dizendo com os olhos alegres palavras melodiosas de amor a Deus.

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