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Lições do corpo

12 de Dezembro de 2018, por Evaldo Balbino

O Hino Nacional nas filas do pátio, garotos de um lado e garotas do outro, o professor ou geralmente a professora à nossa frente. E todas as bocas cantando o decorado hino, falando de um grito às margens de um rio, um brado com espada em riste, e também de flores e de campos e amores. Os mestres cantavam diante de nós: alguns com livros debaixo do sovaco, outros com as brochuras levadas ao peito bem rentes ao coração, e outros mais com pastas solenes cheias de papéis. Os alunos, de camisa geralmente branca com bolso contendo a logo da escola, deixavam a agitação espalhada pelo entorno do colégio e buscavam domesticar seus humores na canção nacional.

E eram bocas acordadas havia pouco. Algumas vinham de café farto, outras de mesa parca mas suportável, e todas de um sono pacato em cidade pequena. As aulas matutinas começavam com essas bocas caminhando pelos morros da cidadezinha, falando, gesticulando e em seguida cantando o “Ouviram do Ipiranga”. Uns em voz altiva para todos escutarem; outros mais humildes e com a consciência de que o canto afinado é para poucos. Havia alguns sem bom senso, que esganiçavam os versos parnasianos, espichando e espanando as palavras, fazendo com que os ossos de Osório Duque-Estradase mexessem raivososentre escuros.

Depois de todo esse ritual, as filas começavam a andar, de duas em duas. Primeiro a da oitava série, para depois a da sétima, e isso até chegar a vez da derradeira: a da primeira série. Os grandões tinham o privilégio de adentrar primeiro o recinto da construção do saber, só eles viam primeiro as cadeiras onde se sentariam, as mesas sobre as quais disporiam seus cadernos e livros. Os nossos corpos incontidos se continham, por fim, em cadeiras e carteiras também enfileiradas.

As matérias eram as básicas. Preposições buscando ligar palavras, redações sobre namoros sonhados ou sobre um passeio no sítio da vovó que não tinha sítio (pois era pobre como Jó), orações subordinadas sempre insubordinadas, equações do segundo grau com duas inencontráveis variáveis e teoremas que causavam transtorno, o mundo no Antigo Egito dizendo a todos que o mundo é mundo desde que é mundo, os relevos e a hidrografia do Brasil e também as geopolíticas buscando paz nunca existida, os corpos (os sempre alegres corpos mesmo quando tristes) correndo nas partidas de queimada ou vôlei ou futebol e também se espichando em alongamentos sonolentos por lentas manhãs, depois os mesmos corpos lendo sobre a vida de Jesus e de todos os santos e pedindo perdão por terem olhado a silhueta x ou y ou z dum colega ou duma colega e às vezes até mesmo dalgum professor ou professora, os desenhos não se fazendo a contento e fora de qualquer talento para a arte pictórica, o mundo animal e tudo o que nele a zoologia houve por bem batizar...

Em toda essa aprendizagem, vinham certas outras novidades numa época sem internet, com pais cheios de pudor e com enciclopédias atravessadas pelo bem dizer nas entrelinhas o que era do corpo humano e dos desejos desse mero e sublime corpo. Nas aulas de Ciências, para além do esqueleto sem vida, para além duma fisiologia que falava de funções internas dos órgãos escondidos sob a pele, o que sobressaltava aos nossos olhos eram os momentos de educação sexual. Eram mares pouco dantes navegados os capítulos do livro com desenhos mostrando corpos nus, vaginas sugeridas, esboços de pênis, explicações sobre concepção, métodos anticoncepcionais e outras mais notícias para adolescentes com acesso a poucas informações dessa natureza humana e urgente.

O professor dessas discussões científicas era o Seu Élcio. Ele chegava em sua roupa séria, sempre de sapato e calça social, camisa de gola, livros e diários entre um dos braços e o corpo. Sentava-se à mesa circunspecto, dava um bom-dia calmo a todos, fazia a chamada, dizia qual era a página do livro em que estava a lição a ser estudada e ia discorrendo sobre a matéria.

Nessas aulas de sexualidade (pena que não foram ministradas no ano todo), os alunos amavam mais o silêncio. Vez em quando um ou outro mais desinibido levantava a voz e interrompia o professor com alguma pergunta meio “obscena”. Após risos e gestos alegres, todos voltavam a ouvir a voz do mestre e prosseguiam silenciosos com seus corpos jovens forjando rumores.

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