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Nem só de broa vive o homem, mas o milho é rei

14 de Maio de 2019, por Evaldo Balbino

Broa é de fubá, bolo é de farinha de trigo com ou sem outros ingredientes. Se teve mistura, já não é broa.

Convivo numa boa com todos os bolos. Inclusive com os de fubá, os que trazem trigo na sua feitura. Mas aí pergunto: são mesmo bolos de fubá? Vendem-se os de mandioca aos montes em confeitarias. A gente vai olhar, e lá vem a farinha de trigo de permeio! Bolo de mandioca mesmo é o que comi certa vez no norte de Minas. Era mandioca pura, ela mesma marcando presença cremosa e perfeita, depois de um processo sui generis duma senhora cujas mãos são de fada.

Se tenho alguma coisa contra o trigo? De modo algum. Como diria Cora Coralina, o trigo tem antigas estações. Lá quando ele vivia no meio dos deuses da Hélade entre rosas e espigas pelos bosques, lá quando caminhava ele fortalecedor nas caravanas dos hebreus buscando no Egito seu pão de cada dia, lá quando florescia ele com Rute respigando e cantando nas searas de Boaz e fazendo esse homem morrer de amores por ela. Lá cantava o mesmo trigo quando Jesus abençoava os trigais da vida. E cá, por fim, está o trigo, ele também pão de cada dia.

Mas mesmo assim não deixo de amar o milho. Faço isso como o fazia a poeta de Goiás. Amo o bró cotidiano das tabas ameríndias, o angu nutritivo do escravo no suor do eito, a broa modesta de quem vive a singela vida, a polenta do imigrante, o alimento dos porcos e do mu de carga. Louvo o milho, as espigas benfeitoras e despreocupadas nos paióis, os seus grãos debulhados para o gado e espalhados nos alegres quintais onde galos inauguram dias. Adoro o milho na sua riqueza humilde e necessária à vida que mais amo.

E por adorá-lo, não me esqueço dele triturado amorosamente nos moinhos de pedra da minha infância. E assim amo do mesmo jeito o fubá e ele imiscuído em minha vida desde sempre. Angu com leite, fubá torrado, fubá com açúcar, o angu cozido em panelas antigas, a broa sobre a mesa eternamente. E por amar tanto o milho e o fubá, deles não me desfaço.

Como todos sabem, porém, desgostos e frustrações rondam os amores. E comigo não poderia ser diferente, é claro. E aqui entra um causo, tão verdadeiro como o próprio fato de o milho e o fubá existirem. Conto agora o tal causo, a título de exemplo.

Certa feita minha irmã e eu visitamos uma senhora numa cidade chamada Coronel Xavier Chaves. Prefiro chamar essa cidade de “Coroas”, como todo mundo faz. Desde pequeno acho esse segundo nome mais enfeitador. E também, amante das palavras que me alimentam, sempre gostei duma história ocorrida nesse lugar em 1943. Um abaixo-assinado, que pedia a mudança do então nome da urbe de “São Francisco Xavier” para “Canoas” (nome este de uma fazenda da região), provocou um mal-entendido pelo traçado da letra, fazendo dar-se à cidade a alcunha de “Coroas”. Linda confusão! “Canoas” também não ficaria mal, pois é palavra que nos navega do mesmo modo.

Volto à visita agora, sem divagações. Era domingo, e aos domingos as visitas são recebidas com algumas regalias a mais. Além do café e do biscoitinho, costuma-se servir, nos dias de domingo, algum quitute mais chamativo. É que as pessoas estão mais tranquilas em casa e se permitem mesa mais variada, mais bonachona para com as bocas cansadas de correr durante os dias úteis de trabalho e pouco tempo.

Não é que a anfitriã nos recebeu com um “bolo de milho”?! Talvez fosse broa, pensei comigo, e a mulher estava confundindo o nome. Mas não era isso. Também não era aquilo. Nem uma coisa nem outra. Nem bolo nem broa.

Recebemos um naco do de-comer. E sentíamos a massa embatumada, pegajosa, grudando em nossos dentes como um puxa-puxa. Era de milho sim, mas milho seco que se dá para galinha ou então milho verde que de tanto assado virara pedra. E comíamos os pedregulhos, buscando triturá-los como se faz numa pedreira.

Acabada a pétrea tarefa, a dona da casa ofereceu-nos mais da iguaria. Minha mana agradeceu, dizendo-se satisfeita e ponto. Eu, idiota, fui elogiar mais ainda a maravilha do bolo. Resultado: tive que aceitar outro pedaço, já pensando nos meus pobres e quebrantáveis dentes.

Meu amor ao milho, todavia, não terminou nunca. Nem mesmo por isso. Mas nunca mais eu quis voltar à casa da tal senhora. Nunca mesmo. Pois não há amor que resista duas vezes às mesmas duras pedras.

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