Há os que dizem: “não me venham com histórias de assombração, pois tenho medo!”. Existem também os céticos: “podem falar e falar, não adianta; o que é inventado não me espanta!”. Rima à parte, não sabem os descrentes que até mesmo a ausência de credo não abre mão de cultos. Enterramos em nós, muitas vezes, o que em algum momento mexeu com nossas cabeças, ou melhor, com nossos cabelos.
Que me perdoem medrosos e incrédulos, pois o que quero falar insiste em minha língua. Sinto-me um contador de causos que nem precisa de cachaça e fumo para tagarelar. Talvez doses de café, que este não dispenso. Quando criança, lá no Ribeirão de Santo Antônio, ouvi muitas histórias, e com um gosto de palavras proferidas por pessoas que nunca passaram por bancos de Escola. Cada vogal e consoante em pronúncias peculiares, tudo me era melhor do que o café em canecas esmaltadas. Ou igual a ele, pois cafeína e palavras são fundamentais para manter olhos e mentes acesos sem perigo de sono.
Que me perdoem, então, pois relembro aqui uma das ficções verdadeiras do Raimundo Mundo. Só ele mesmo para contar coisas como fazia o Teotônio. Sua língua peregrinava tanto como suas pernas. Sempre chegava lá em casa com pés cansados, todavia dispostos a se arrastarem pelas estradas do Ribeirão. Relembro aqui uma história que ele contou certa feita. Rememoro-a sem transcrevê-la, pois transcrição plena é impossível. Se a traição às palavras alheias é inevitável, assumo desde logo que sou traidor. E assim vou escrevendo.
O baile fora animado. As luzes mortiças dos lampiões ainda iluminavam o cansaço da madrugada. No terreiro, poucas pessoas. As mulheres já tinham se recolhido a suas casas. Quase todos os homens já tinham ido também. Era sábado.
O domingo seria para descanso, mas tinha a missa das seis horas, e o padre não gostava de ver a capela vazia. Quando a maioria dos fiéis se atrasava, ele até que começava o culto. E fazia isso murmurando ladainhas com má vontade, ferindo o latim como falamos rispidamente com quem nos contraria.
O outro dia seria domingo, e quase ninguém dava mais sinal de vida no terreiro da Fazenda do Morro das Antas. Foi aí que o Seu Chicota, o meu avô que era dado a bailes e viola, pegou seu instrumento de corda, dependurou-o nas costas e passou pela porteira escancarada. Nesse ponto o Raimundo Mundo colocava como protagonista da peripécia o meu antepassado, e fazia isso sem nos pedir licença.
O Chicota, então, viu que a lua o ajudava. A estrada se mostrava branca, como se fosse de leite. Depois de atravessar a ponte cujas madeiras rangiam a cada passo, ficou sem discernir o que mais fazia ruído, se a ponte sob os pés ou se o bambuzal ao lado. Subiu até a capela com o adro em barrancos e foi descendo até o Ribeirão do Meio pela cava profunda, cercada de matos que pareciam virgens de tão densos.
Dentro da cava era tudo mais espesso, o escuro mais caudaloso. Sem a contribuição da lua, o pó já não era mais lácteo, e sim um estorvo balofo em que as botinas afundavam. Chicota foi descendo e assoviando, no ritmo ainda do baile. Eis que de repente notou um cavalo se aproximando. A silhueta era esbelta, garbosa, mas com o escuro não dava para ver direito a cor do animal. Com arreio posto, deu para perceber a rédea se arrastando pelo chão. Porém era estranha a ausência do cavaleiro.
Preocupado, pensando que o cavalariano estivesse bêbado e houvesse caído mais lá para baixo, num pulo segurou a rédea do cavalo desinquieto, e foi puxando o mesmo consigo.
O cavalo bufava estranhamente. O ar que soltava era mais frio do que o vento soprando na densa vegetação escurecida. Seu Chicota, então, se lembrou de repente da história de um tal cavalo de três pernas. Um que diziam perambular sozinho pelas madrugadas daquelas grotas, mas que durante os dias não era visto por ninguém. O medo tomou conta do violeiro. Mesmo assim resolveu olhar para os pés do animal. O susto foi GRANDE, dum tamanho sem par.
Nessa parte da historieta o Raimundo riu com seus dentes amarelos. Riu com vontade, gargalhou entre goladas de café. Suas mãos tremiam sempre, mas agora vibravam mais. Vibravam de felicidade incontida, dessas que nos levam a viver com sobressaltos.
E terminou a fábula entre mãos e boca felizes, dizendo que o Chicota chegara a casa depois de uma corrida com forças que não tinha. Chegara com as calças molhadas de urina e com a camisa rasgada numa cerca de arame. Terminou como se dissesse: “Quem tem ouvidos ouça o que diz esta boca verdadeira”.
O cavalo de três pernas
13 de Setembro de 2011, por Evaldo Balbino
Leitor do JL - 21/09/2011