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O pescador de lembranças

16 de Abril de 2019, por Evaldo Balbino

No profundo romance Uma fenda na muralha, o escritor português Alves Redol escreveu que “se no Mar um homem matasse peixe como as palavras puxam lembranças, o Mar ficaria vazio em poucos meses”.  Não sou matador de peixes, mas luto sim com palavras para puxar lembranças. É uma luta amorosaa que faço. Tudo o que digo não se conclui, nunca termina. E assim vou vivendoentre palavras e palavras mais.

Pois não há como fugir das palavras. Quero tocar as coisas, e não consigo. Tenho só palavras. Temos só palavras, principalmente as poéticas, para tentarmos dar conta do que não se consegue na vida, sobretudoda eternidade. Por isso fazemos representações literárias. Construções metafóricas de Deus, da vida, enfim de tudo o que existe e o que se imagina. Esbarramos sempre na impossibilidade de falarmos de nós mesmos. Então falamos de tudo. No fundo mesmo, todavia, buscamos falar é da gente. Estamos sempre lá, entre as palavras, mesmo que por detrás de máscaras. E, mascarados, vivemos a vida, entre palavras, lembranças e sonhos.

Eis a superfície da mesa que pesco com meus olhos. Eis a cadeira vazia da minha presença. Eis as cortinas por fechar e abrir, a brisa calma lá de fora da nossa casa. Eis a nossa casa mesma e tudo o que nela existe. Eis a rua e os seus passantes, as pessoas outras, os animais, as plantas com sua vontade de movimento e vida... Eis tudo isso que cai na rede de nossas mãos copiosas no buscar rastros do que se viveu, passos do que se vive. E sempre tecendo, as nossas mãos rendeiras vão tramando redes para futuras pescarias. E vão sempre esperando que chegue o Filho do Homem com suas promessas de peixes, o ar benfazejo soprando das águas da vida.

Isto aqui, o que urdo, não tem nenhuma pretensão. Não sou o poeta promovendo um Cântico dos cânticos. Não sou o rapsodo proclamando o Poema dos poemas. Os traços que vou arquitetando são meros traços. Riscos pretos em pauta branca, página que se abre à minha frente como se abre a neblina do tempo para os longes que vão se formando e se distanciando à medida que o tempo passa.

E a neblina, não obstante seja densa, permite aos meus olhos a (re)visão de muitas coisas, de pessoas, de fatos. Visões e revisões que se transformam, que se curvam e mudam de forma, mutantes. Assim mesmo como um pauzinho imerso n’água nos apresenta sua pontinha curva que, na verdade, é reta. Tudo é filtrado por espelhos, tudo ao contrário e a mesma coisa.

Não são apenas contos de fado o que conto. Mas o que traço são pinturas amorosas por mãos de memorioso, de um que memoria e que o faz com amor. De tanto memoriar amorosamente, posso-me sim dizer memorioso, o pleno de passados, vividos e revisados.

Não quero e não posso, portanto, compor a Memória das memórias. Assim vou tecendo recordações diversas, pequenas, várias. Minhas mãos são meu coração. E meus dedos se emaranham em pedaços de retalho para a composição duma colcha que não se finda. Pequenas falas, as minhas. Homilias que tentam alcançar a grandeza da vida. Alocuções conscientes de que tal grandeza é inalcançável e de que nos resta apenas viver a vida. Cada momento eterno e mutável em nossa memória.

Sem nenhuma vaidade, então, vou ciscando as páginas ofertadas a mim pela existência real e concreta. Vou ciscando-as tal qual uma galinha esperta indaga o terreiro vasto. Vou remexendo detritos para vasculhar e retecer o passado, que é tão e sempre presente. Tão e sempre diverso de mim e igual a mim mesmo.

Resgato e reconstruo tudo como se redimem pecadores das profundezas do inferno na mitologia cristã ou como se libertam mortos dos mundos subterrâneos em outras mitologias.

Faço, portanto, como todo ser humano fez e faz: construo narrativas para poder me salvar, para nos amparar a todos de tempo e traça. Faço isso para defender a própria traça, transformando-a também num traço.

Tudo são memórias de memórias mais. Tudo isso que aqui se verbaliza e se busca arrematar. Mas não alcanço arremate de nada. A vida nunca termina, é eterna. Nada se conclui, tudo prossegue. Pesco nas águas da vida, retiro delas com afinco as ondas que nos perfazem. Apanho dessas águas, sempre. Tento ardilosamente conseguir rever os passados, e sempre estou imerso num tempo sem fim.

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