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Olívia

12 de Novembro de 2019, por Evaldo Balbino

Após as várias facadas, num dos braços e no peito, o marido cambaleou até um barranco. Deixou cair ali seu corpo cujo sangue jorrava por veias da vida desatada para a morte. E foi ali que Olívia, apressada no meio das pessoas no adro da capela, abeirou-se e lhe deu o último alívio. Curvou seu corpo de esposa, sentou-se ao lado do marido e lhe ofereceu o colo. Sobre o seu vestido, o sangue do homem jorrado, o coração dele quase parando até parar-se de fato, e o dela batendo forte, desafinado entre raiva e susto. Meio anestesiada, talvez, mas com dores suficientes para começar a chorar o fim do consorte.

Por algum tempo ainda frequentou a igreja. Em cada vez que se achegava à capela, no adro da ermida, a mesma dor, o mesmo susto, o mesmo medo brotando-lhe rubro no peito. Era da irmandade do Rosário. Em ritos sagrados ou formais, como nas missas e nas reuniões de conferência, usava uma fita no pescoço com uma medalha representando Nossa Senhora do Rosário.

Tempos depois conheceu o Sr. João Batista, homem evangélico que acabara de chegar ao povoado para evangelizar ovelhas do local. Como Olívia já tinha alguns parentes “protestantes” em arraiais do entorno e já “namorava” aquelas tendências de mulheres de saias e cabelos longos e jeito conspícuo, caiu na graça das palavras do pregador. Numa tarde de sol e céu azul aberto para Deus, deixou-se imergir num córrego tranquilo. Batizada, viveu muitos anos na nova igreja, até sua morte.

Já idosa, com filhos quase todos casados, com netos formando um povaréu de tanta gente, ficava em sua casa sempre na lida doméstica. Recebia as pessoas com biscoito e café feito de garapa ou de açúcar preto. Tudo cultivo dali mesmo, do retiro que o marido deixara a ela e aos filhos.

A casa era um sobrado cujo porão dava medo e onde antes se guardavam cambões, sacos de mantimento, arreios, cangas, varas de guiar gado, estribos, couros curtidos e ferramentas de trabalhos da roça. No porão, antes, um vaivém de peões, de lavradores que amanheciam com as galinhas para trabalho tanto. Depois, um silêncio escuro que podia ser visto através das frestas no assoalho da casa. Era de madeira nobre o chão, mas havia nele fendas por onde se podia namorar e temer o escuro.

No terreiro da casa muita era a festa, tudo era baile e jubileu, onde se dançava ao som do sertanejo de raiz, de um forró que alçava poeira. Ia para ali muita gente do Curralinho, povoado próximo, e todos chegavam para festas religiosas e profanas. A casa de Olívia era pensão sem cobrança nenhuma. O pessoal dançava de fora e de dentro do sobrado.

Olívia, na idade cada vez mais chegando, não perdia a argúcia do corpo. E no passar do tempo nem mais falava da triste morte do marido. Gostava de receber os netos, sobretudo para dar-lhes doce, açúcar preto e trabalho. Havia aqueles que chegavam matreiros, aceitavam a barganha da lida pelas iguarias, ganhavam antes o de-comer e saíam à francesa sem pagar à vó com o trabalho prometido.

Quando já bem idosa, Olívia não chegou a viver só. Dois filhos ainda eram solteiros. Um morava em São Paulo e outro com ela, sendo que este nunca chegou a se casar. Um terceiro, esse sim casado, continuou vivendo também com a mãe, tendo levado a esposa para junto da sogra.

Quando veio a adoecer de fato para a morte, levaram-na a São João del-Rei, pois em Resende Costa, a vila, não havia todos os recursos medicinais de que ela carecia. Veio a óbito num hospital são-joanense. Um neto, o mais velho de todos e já casado, deixara a família no povoado e a seguira de companhia. Ele providenciou tudo, tanto em São João, quanto na vila e no povoado. Foi neste que se realizou o sepultamento.

No enterro, deu-se um imbróglio. O coveiro quis sepultá-la no espaço do cemitério reservado à Irmandade do Rosário, o que o neto não aceitou, pois afinal ela já era batizada havia muitos anos noutra igreja que desde então passara a frequentar. No colóquio tenso entre o coveiro e o neto, o primeiro aventou a possibilidade de deitar o corpo na fileira dos pagãos. Depois dum falatório, foi Olívia deposta no lugar comum de todos os que nunca pertenceram a irmandades nem levaram o nome de pagãos. E para ela, com certeza, qualquer lugar lhe cabia no seio da terra.

Comentários

  • Author

    Amei ! Minha bisa


  • Author

    Obrigado, Cristiane! Nossa bisa, com certeza! Nesses escritos, recrio a memória dos seres que amamos. Abraços!!!


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