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Os cinco corações

19 de Janeiro de 2017, por Evaldo Balbino

A tarde indo pelo meio, o Sol abrasador lá fora. Sob o telhado candente de amianto, as mãos da mãe trabalham. Rangendo um pouco, o tear inquieto transpira castigado pelo calor. Os pés da mãe alternam as pisadeiras. Os braços puxam e empurram a queixa, intercalando-se no ato certeiro de jogar o novelo, cruzando os fios de retalho que vão compondo a colcha. Alguns fios arrebentam-se na teia. Mas a paciência levanta-se do banco, apoia a barriga no rolo, e os dedos pacientemente arrebanham os fios tresmalhados, passando-os pelo liço, unindo ponta com ponta, restabelecendo a continuidade que se havia perdido, o caminho da construção.

Na parede de tijolo, algumas aranhas escondidas invejam trabalho tão difícil, porque não ofertado pela natureza. Enquanto a aranha é a mestre natural da tessitura, a mulher é a mestra-mor, pois não lhe foi dado tecer assim gratuitamente. Teve a mulher de aprender tecnologia tão nobre, tão bela. No entanto mulher e aranha não se confrontam. Ambas são parceiras nas tessituras da vida.

E a mulher vai tecendo com o filho ao lado. O menino fica ali, raquítico mas esperto, cansado de já ter ido à escola pela manhã, de já ter buscado o leite na casa da Dinha, de já ter ajudado na arrumação da cozinha depois do almoço. Dever de casa já feito, que a tabuada será tomada pela professora no dia seguinte. Ponto por ponto será cobrado. A multiplicação é complicada, contudo o garoto persiste. Tem o desejo de que na vida as coisas boas, como estar ali com a mãe, se multipliquem e que não sejam vítimas de tanta subtração. Mais para a noite, ele ainda terá que correr pela rua, bater uma pelada, fugir às pressas num esconde-esconde pelos cantos ao redor. Antes disso tudo, porém, a contemplação da boca e das mãos da mãe. Um canto nos gestos e na voz.

Então o desejo antigo do menino, anterior a ele mesmo. E o pedido que nunca se cala:

– Mãe, canta de novo pra mim!? Canta a da vaquinha!

Atendendo a vontade incansável do filho, o tear batendo sem cessar, lá vem a voz da mãe gorjeando com altura e zelo a história triste da vaca em seu destino. As mãos puxando e empurrando a queixa do tear, enquanto a boca entoa a queixa da vaca em seu fadário. A declamação inicial, considerando a vaca em sua realidade sem alegoria, introduz um cenário triste: "Aquela pobre vaquinha indo para o matadouro, / tão velha e magra que tem os ossos furando o couro. / Parece que ela adivinha que caminha para o fim. / Se ela pudesse dizer, talvez nos diria... assim...". E o guri suspirando, esperando pela voz modulada após o introito doloroso.

E de imediato o lamento da vaca, a verdade dita ao homem, nua e crua: “Meu boiadeiro me levando à morte, / Dei minha vida para lhe ajudar, / Meu leite puro é que matou a fome / De seus filhinhos, que ajudei criar. / Os meus filhinhos você levou embora, / Uns para o corte e outros no estradão, / Puxando carro pelo chão do mundo / De dor, sangrado pelo seu ferrão. O “chão do mundo” provoca um oco no coração do moleque, um sentimento de profunda tristeza. As palpitações do tear dão o compasso da música, os passos da vaca, o ritmo de um coração machucado que, no entanto, bate ainda com anseio de vida. Os batimentos secos do tear misturam-se com as vogais sonoras na voz da mãe, dando a elas uma base, um alicerce, um chão firme.

A “chicotada da partida” reboa no ouvido atento à voz da mulher. Os olhos da infância estremecem, como se estivessem eles mesmos sendo flagelados. Uma infância já tremendo perante os açoites do mundo. E a mãe continua dramática, num canto altissonante que todos da rua podem ouvir. O tear segue gemendo surdamente; os pés não param; as mãos prosseguem; o gorjeio avança, vibrando.

“Quando sua faca atravessar meu peito / E o meu sangue lhe escorrer na mão...”. O coração do garoto disparado, a língua seca de alegria e de medo, os olhos com um brilho indescritível. A imagem do sangue escorrendo, da faca atravessando o peito da vaca, da vaca morrendo sem resistir à faca. E o menino tonto, tonto de prazer com o canto da mãe, tonto de dor ao encarar a morte. A morte de um ser tão importante como a vaca.

De repente uma luz brilha no céu: “Desde o início da humanidade, / Quando em Belém viram a Divina Luz, / Com o meu calor, na fria manjedoura, / Fui eu que um dia aqueci Jesus”. Os lamentos da mãe e da vaca perduram, mas agora a estrela de Belém aparece e aquece todos os corações. O seco coração do tear, o amoroso coração da mãe, o sangrento coração da vaca, o disparado coração do filho, o sagrado coração de Cristo.

E a imagem do presépio abre o sorriso do menino. Não um presépio montado, desses que se fazem todos os anos em milhões de casas. Mas sim um presépio outro, remoto: aquela cena real em que Maria e José, fugidos de Herodes, hospedam-se numa estrebaria sob os auspícios de simples animais. E lá estava a vaca, presença doce e duradoura, anterior ao lamento que agora o menino ausculta.

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