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Os ipês sempre florescem

17 de Outubro de 2018, por Evaldo Balbino

Meus irmãos, seus amigos e alguns de nossos primos eram amantes da viola, mas sempre entregues ao dileto violão. Sentavam-se às noites no passeio de fora da nossa casa e cantavam como cigarras noturnas e alegres. Eram diletantes, porém com um labor de ourives que só vendo! Risadas e falação se misturavam para decidirem que música viria à baila em cada vez que as mãos dedilhavam o instrumento. Tinham eles vozes prontas para um canto gostoso de se ouvir.

Eram tristes e também alegres as músicas. Sertanejo de antigamente, sem modinhas “urbanas” ou “universitárias” que hoje se perfazem com outras configurações. Era a voz do gado, a lida do boiadeiro, era a manada de flores e o buquê de animais e pessoas vivendo um mundo rural, às vezes bucólico, noutras vezes dramático. Tudo era uma coisa só e ao mesmo tempo confusa nessa infância do mundo. Histórias de amor, sangue derramado, arrependimentos, encontros e desencontros, e mais a lida entre homens e bichos, animais prestimosos e amados mas também subjugados.

Entre as canções ao som do violão e das vozes, “O ipê e o prisioneiro” de José Fortuna e Paraíso era coisa certa. Todos os dias, no rádio grande lá em casa, bem como no radinho que meus irmãos levavam consigo para o serviço de pedreiro, a cantoria afinada de Liu e Léu era ensinamento, escola espontânea na hora dos afazeres. A voz meio tremida dos sertanejos; o agudo do tom; a segunda voz acompanhando o ritmo choroso e dorido e fazendo parceria com a primeira, casando-se com ela, unindo-se ambas para nunca mais separar. E o enredo cortado de dor da música se tecendo aos nossos ouvidos.

Uma sala fria. Do segundo andar da penitenciária o prisioneiro canta e conta sua sina. Seus olhos veem o jardineiro que planta um ipê. A arvorezinha vai crescendo ao correr dos dias e do canto. Ela vai ganhando vida enquanto o prisioneiro sofre, escala alturas e chega à janela da cela. Os olhos sentem e o coração percebe: dentro do cárcere as noites não têm mais aurora; e o ipê é pura claridade no mundo lá fora.

Porém a teia musical avança e destrança o fado de todos. Os olhos encarcerados são livres para ver toda prisão. O cipó parasita abraça forte e amoroso o tronco do ipê, e de tanto amá-lo o vai sufocando. Existem amores assim; precisam do outro, sufocam-lhe a vida. Enquanto as ramas apertam a árvore clara e alta e a levam pouco a pouco à morte, o carcerário pensa e canta o que pensa: sua mulher também o abraçava e o traía. Mata-pau. E a causa da prisão se revela: traído pela companheira, o cantor a matou e purga agora o frio da solidão prisioneira.

Isso tudo dá um debate. Escrita em tempos outros, hoje essa canção daria muito o que falar. Ainda mais com leis mais exatas e necessárias que combatem o feminicídio. Lá na minha infância, no entanto, não me lembro de ninguém debater isso, questionar o ato da voz cantora e aprisionada. Não se debatia mesmo, infelizmente. Era tácita, contudo, a ideia perfeita de que o homem da história errara e de que estava pagando perante a sociedade e a justiça por seu erro. Pelo menos isso.

Na minha meninice, eu não deixava de ver a dor do homem cativo. E com certeza a dor do ipê. Um tronco robusto e alegre, um coração amante e ciumento, uma fronde espalhada sob o sol, uma fronte fechada no escuro, uma respiração gerando vida, um ato violento ceifando a seiva. E o cipó da existência nos abraçando sempre. Ele, o cipó, sem culpa alguma. Já o coração, movido pelo demônio do ardor, não medindo consequências.

Hoje e sempre meus olhos relembram tudo. Meus irmãos, seus amigos e os primos ainda cantam em meus ouvidos. Hoje, cada um para um lado, com alguns nem tenho mais contato, mas todos entrelaçados nos cipós da vida. Ouço suas vozes, seus risos, e todo o drama do prisioneiro e do ipê acontece de novo diante de mim.

Do mesmo modo ipês floridos me acontecem sempre. Nas viagens, pelas estradas, nas ruas de qualquer cidade, eles crescem alegres e me deixam feliz e pensativo. Me fazem rever pessoas, ouvir a canção de Zé Fortuna e Paraíso. E me dão o senso de que no jardim da vida existem quedas, de que querubins nos impedem a felicidade meneando espadas de fogo nas mãos. E ficamos aqui deste outro lado do paraíso, fazendo e ouvindo canções, cultivando floridas belezas.

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