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Pra que é que serve uma canção

11 de Marco de 2019, por Evaldo Balbino

Ao Padre Zezinho

Nos intervalos das aulas durante o 2º grau, ficávamos comedidos, não brincando exatamente como crianças, mas sendo crianças ainda em certos aspectos. Meio infantes e meio adultos. Casais de namorados conversavam com certo receio de ser pegos fazendo algo proibido. Conversas baixas, sussurros ao pé do ouvido, olhares e mãos com sede, mas tudo num fingido recato. Afinal, estávamos numa escola em tempos de maior rigidez. Outros estudantes, ainda não entregues suficientemente e de modo corajoso às ondas inquietas e gostosas do namoro, dialogavam sobre assuntos diversos. Alguns, sobre sua vida estudantil no futuro; outros, sobre as vidas alheias; outros mais diziam de professores e professoras, falando mal e falando bem...

Relutávamos em chamar de recreios a esses intervalos. Alguns de nós os consideravam como tais, e corriam um pouco, mesmo que timidamente, em geral “brincando” de esconde-esconde. Poucos, porém, se davam a esse ludismo. Havia, em nós mesmos, exigências de adultice.

O vice-diretor da escola, muito religioso, achava por bem regar aqueles momentos com canções do padre Zezinho. Muitos colegas meus se irritavam com isso, chegavam mesmo a questionar por que tínhamos que ficar ouvindo aquele tipo de música. A onda era ouvir sertanejo, lambada, axé, rock ou outros hits dos anos de 1970 e 1980.

Eu particularmente ruminava a bela voz do padre, sua poesia, sua lira alimentando em mim um delírio pelo que é belo e justo, pelo verdadeiro de Deus e humano que habita em nós.

E me chegava a história dos tempos de criança, do menino dizendo do aconchego do seu lar, dos seus pais carentes de escola e de dinheiro. E eu ia escutando o menino já adulto, no seu canto de cotovia, dizendo aos meus ouvidos a verdade de que havia mais gente crendo menos, mas também me dando a certeza inabalável de que no escuro de nós sempre incide uma luz sem fim.

Eu escutava a narrativa dos três magos buscando pelo Rei dos reis recém-nascido, a estrela ímpar brilhando no Oriente. E me apeguei ao enredo de uma criança com caneta e papel na mão, com tarefa escolar para cumprir e perguntando o que era preciso para ser feliz. E o padre respondendo que era só viver como Jesus vivera. O que faríamos, eu me perguntava, para viver como o Filho de Deus? Como eu faria para dormir mais feliz ao fim do dia? As palavras eram lindas na boca do pregador e acariciavam a criança e o adolescente que as ouviam. E o desejo daquele ser infante era o meu próprio desejo.

A mesma voz do padre denunciava as contradições: o povo feliz no Carnaval e milhões de crianças não convidadas para essa festa, milhões de abandonados não protegidos pelo progresso, seres espúrios como fruto incriado, criaturas ao relento num país que jamais repartira seu pão. Em meio à vida árdua, bela e triste, pessoas morrendo por causa dum pouco de terra e comida. O homem matando o homem, poluindo os rios, produzindo lixo nuclear, jogando veneno nos campos, nos rios e no oceano. Não me esqueço da admoestação: “Se o homem morrer, também morrerás! / Também morrerás!”.

Até hoje ouço e canto “Mãe do Céu morena”. E vislumbro como eu vislumbrava a América Latina de tantas raças, a serena Mãe de Deus caridosamente olhando para nós, tão pequenos e oprimidos. E todo um coral feito de vozes latinas lhe pedindo bênçãos nestas terras novas, invadidas e estupradas muitas vezes. E uma lição indelével: Nossa Senhora, negra, ensinando-nos a não calar a voz, mostrando-nos que a justiça é fundamental para construirmos um mundo mais irmão.

As canções do padre Zezinho me diziam e me dizem da humana dor. Do mesmo modo me mostravam caminhos para eu buscar um pouco de paz em mim e no mundo. Alumiavam-me a fé de que Deus sempre crê em nós. Fui aprendendo com aquelas músicas um pouco de esperança, a crença nas coisas que não se veem e que se sentem. Seus hinos eram e são serenatas de amor a Deus e compaixão para com o homem, eram e são cantos que podem mudar o mundo em nós. O mesmo padre Zezinho se perguntou certa vez: “pra que é que serve uma canção?”. Ele mesmo respondeu e lhe sigo o tom: há uma canção que nos faz celebrar, há outra que ajunta o povo e lhe torna mais fraterno. Por isso, padre amigo, por isso se faz uma canção.

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