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Vó Laurinda

19 de Fevereiro de 2020, por Evaldo Balbino

Da minha avó materna, o que tenho de concreto são palavras dos que a conheceram e uma antiga fotografia.

Casou-se com meu avô aos 15 anos. Teve 09 filhos, vindo a falecer um deles ainda criancinha. Ela morreu jovem aos 38 anos com uma hemorragia inestancável, deixando órfã minha mãe que contava apenas dois anos. Estava minha avó grávida do décimo filho e fora chamada para ajudar no parto duma comadre. Tendo feito muita força nesse préstimo, logo depois começaram as cólicas, o seu sangue desatado, a fraqueza do corpo e por fim veio a morte. O bebê não-nascido morreu junto com a mãe, no seu seio sem vida.

Trabalhadora, diuturnamente ela enfrentava sol e chuva, sereno e frio, para cuidar da prole, das criações domésticas, da casa, do marido. Num terreno que eles tinham lá para as bandas do Saco das Abóboras, depois do cemitério do povoado, ela e o marido criavam algumas vacas com seus bezerros. E ela, todos os dias, saía do Ribeirão do Meio com latas grandes de banha, subia o morro para o Ribeirão de Cima, tirava leite das vacas, descia de volta com uma lata na cabeça sobre rodilha e outras duas pendidas dos braços, e dividia tudo com as mães do entorno, as que não tinham vacas para dar leite aos filhos. Na horta da sua casa, ela cortava canas e subia ela mesma com os feixes cortados para o Ribeirão de Cima, onde moía tudo no engenho do cunhado, o Antônio Gonçalves. Suas mãos diárias colhiam, secavam, pilavam, torravam e coavam com garapa o café que a família bebia. Labutava com o marido nas lavouras. Ele trabalhava também, mas era amante de bailes, Folias de Reis, sanfonas, festanças, noites atravessadas por músicas. Muitas vezes, pelas noites, deixava a jovem mulher em casa e ia para seus festejos.

Nas histórias sobre minha avó que me são narradas, vejo vida dura, talvez com alegrias, mas também com tristezas intratáveis. E até mesmo me pergunto se ela chegou a ser feliz num casamento atravessado por valores patriarcais, mesmo sendo ela mulher ativa, cheia de iniciativas no cuidado com a vida.

Mais real ainda do que as palavras, vejo a velha fotografia dela com o marido, recém-casados, num jubileu em Congonhas do Campo. Retrato em preto e branco, mais ou menos de 1929, porém me dizendo muita coisa e com vários matizes.

Ela e o recém-esposo na porta duma igreja na cidade dos profetas. Em sua barriga de mulher frutífera, já a primeira filha esperando a luz. Sua mão esquerda entre o braço direito dele caído e o paletó simples. No anular da mão farta de minha avó, a aliança do concerto, do matrimônio contraído até os seus 38 anos de idade. Nem muito gorda nem muito magra, já se mostra mulher tendendo a ter corpo mais cheio. Se o braço esquerdo cumpre o papel social de entrelaçar-se ao braço do esposo, o direito mostra-se caído, numa suposta entrega ao destino. No entanto, mesmo de braço direito derreado, a mão fecha-se numa concha, num encerramento de resistência e força.

Cabelos fartos os de minha avó, mas agora, neste retrato, contidos na cabeça, arrebanhados para trás num coque. Cabelo liso e brilhante, num tom castanho-escuro e numa arrumação para festas. Os dois sérios, como se exigia em fotos desse tipo na época, apesar de ele exibir nos olhos uma vaidadezinha de nada com seus óculos escuros.

O vestido dela não é justo, e sim um pouco largo. De tecido simples como o de uma dona de casa do povo na época e duma região rural mineira. Gola redonda em torno do pescoço, escondendo um corpo que não podia mostrar-se. Trivial o vestido, mas branco talvez num desejo de núpcias, de vida, de placidez da existência. Longo até a canela e com mangas compridas aparentemente franzidas deixando os punhos expostos. Sapato tipo boneca abotoando-se nos lados exteriores dos pés com os peitos à mostra. E suas pernas merecedoras de seda exibem meias três-quartos pretas de um tecido comum.

No semblante de minha avó vejo um pensamento vago, talvez um “o que que eu estou fazendo aqui?!”. Casada porque mulheres nasciam para casar-se. Rosto infantil e tendo que enfrentar o mundo como se ela fosse adulta. Vejo em seu olhar certa tristeza, ou então certo existir com uma vontade seguindo correntes d’água. Muito nova ainda e abrindo-se para a vida. Vejo algo melancólico nela, mas também uma vida pulsando. Vida essa que chegou até estas mãos que agora escrevem outro retrato de sua avó.

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