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Voltando sempre para casa

15 de Agosto de 2018, por Evaldo Balbino

O dia amanheceu alegre, a luz entrando pelos poros da existência. Porém eu estava pesado, ansioso, e principalmente com medo. Já tinha conhecido Belo Horizonte havia quase três meses. Fora em dezembro de 1994 a minha ida para a capital, o enfrentamento no vestibular da UFMG, eu pela primeira vez numa cidade grande. As ruas movimentadas, os carros, o barulho, a multidão solitária. Voltara lá em janeiro de 1995 para fazer a segunda etapa do concurso. Viera ao fim a desejada aprovação. Março desse mesmo ano já se aproximava e a necessidade de ir embora me atravessava com urgência. As aulas da faculdade começariam logo. Um teto a ser arranjado, um emprego a ser procurado e uma adaptação a uma nova vida completamente diferente para garoto de 18 anos que mal conhecia São João del-Rei e só.

O dia amanheceu, pois. Tomei com meu pai um café, muito amargo pela primeira vez na minha vida. O pai, sempre amoroso mas durão, agora com os olhos úmidos, a voz embargada e surda. Minha mãe continuou em sua cama. Sempre levantava antes de mim, mas daquela vez ficou deitada evitando despedidas. Fui ao quarto abraçá-la. No berço ao lado, minha maninha com seus 05 anos. Dormia profundamente o anjo, pois ainda não entendia de partidas. Mamãe chorava, soluçava baixinho, os olhos vermelhos. Abracei-a sem deixar que se levantasse.

Depois, pegar o ônibus da Viação Sandra (que passava do lado de fora da nossa casa, pois ainda não tínhamos rodoviária), sentar-me no banco, abrir a janela para a rua em que fui criado, tentar me acalmar – tudo isso foi tarefa difícil, novo caminho pela frente. Uma vida inteira, não abandonada, mas ficando para trás do veículo, servindo de alicerce aos dias vindouros. A base da construção de memórias.

Essa foi a manhã do dia em que saí de casa. E tempos depois, visitou várias vezes a minha mente a canção No dia em que eu saí de casa, do gaúcho Joel Marques, um dos grandes compositores da música brasileira e merecedor de aplausos por fazer poesia com as coisas comuns da vida. E as palavras da mãe ao filho reboando nos meus pensamentos: “Por onde você for eu sigo / Com meu pensamento sempre onde estiver / Em minhas orações eu vou pedir a Deus / Que ilumine os passos seus”.

E depois, do mesmo modo, na cidade grande o sentimento de saudade em mim ressuscitando várias vezes, aquele do qual nos fala Dorival Caymmi em sua também bela canção: “Ai, ai, que saudade eu tenho da Bahia / Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia / ‘Bem, não vá deixar a sua mãe aflita / A gente faz o que o coração dita / Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão’”.

De maldade e de ilusão o mundo se faz, é fato. Mas também de belezuras, de braços e mãos que se estendem e nos ajudam, de bocas (como a de minha mãe) que oram por nós todo santo dia. E como desconhecer o poder de uma oração? O poder de palavras em sintonia com as forças boas do universo, com as forças de Deus? Com tanta fé e bons desejos direcionados a nós, não há como nos perdermos de todo no vasto mundo.

Porque o mundo é mesmo vasto, infinito em sua finitude. Muitos já disseram isso, inclusive, aqui em Minas, o nosso Carlos Drummond de Andrade. E nossas mães ficam aflitas, sim, quando percebem que seus filhos partem para um mundo pleno de maldade e ilusão. E elas oram, rezam, distantes dos seus filhos e filhas, pedindo a Deus ou a algum santo uma ajuda do alto, rogando-lhes que os seus rebentos vivam debaixo da misericórdia celeste. As mães – e também os pais – sofrem. Oram e sofrem. Sofrem por não terem a plena certeza de que serão mesmo ouvidos.

A fé é esse sentimento penoso, porque posto à prova constantemente. Mas é nesse fundamento que nos assentamos, é dele que precisamos, é a partir dele que construímos esta ampla e linda casa que é a nossa vida. Pela fé todos vencem, apesar das coisas ásperas da existência. Vencemos em nossa história, que é tão boa e tão agressiva ao mesmo tempo.

E foi nos braços agressivos e bons da vida que peguei naquele dia a estrada entre as montanhas de Minas. Fui embora da casa de meus pais, dando voltas, perfazendo sinuosidades, mas nunca saindo de lá. Nos volteios inevitáveis, a gente vai indo e vindo, e sempre voltando para casa.

Comentários

  • Author

    Parabéns, professor Evaldo. É um verdadeiro deleite sua crônica. Fiquei emocionadíssima. Saudades de você.


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