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Zezinho e as galinhas

18 de Junho de 2019, por Evaldo Balbino

Era casado com uma tia de meu pai. Raramente lembro ele chegando lá em casa na roça com a família. Eram muitos os seus filhos, como lá em casa éramos. Fazia-se prole naquela época como se fabricam produtos numa indústria. Isso só em termos numéricos, é claro, porque sempre cada um de nós é cada um, tendo lá suas especificidades. Nas famílias de outrora tinha muita reprodução, mas nada de reprodutibilidade técnica.

A lembrança verdadeira que tenho do tio Zezinho não é o seu rosto. Não lembro se era branco, negro ou mulato. Seus olhos, seu nariz, sua boca faladeira, seu cabelo. Não me lembro de nada. Falava muito. De sua voz, porém, também não tenho nítidas recordações.

Ele ia lá no nosso povoado uma vez por mês. Às vezes esparsava a viagem e demorava uns dois meses ou mais. Chegava à nossa terra de caminhão de leite, pois na época ainda não havia ônibus para os povoados da vila. Tinha eram os caminhões de leite. Uns dois, duas vezes todos os dias, passavam pelo povoado, de manhã e de tarde. Assim era nossa comunicação com a vila. Alguns ainda insistiam em mulas e cavalos. Mas na urgência, os caminhões eram lotação de gado humano.

Tio Zezinho vinha e andava de porta em porta. Bebericava café com todos e de todos comprava ovos de galinha caipira, milho, fumo, fubá moído nos moinhos d’água. E levava também galinhas, muitas galinhas lá pras bandas de São João del-Rei. Isso devia dar dinheiro, sim senhor, porque o homem não parava com as andanças.

Se não lembro claramente o rosto do comerciante, sei do perfil do seu corpo, do homem alto que era, de suas pernas compridas e de como ele andava meio dobrado com tanto peso no lombo. A imagem verdadeira que me chega dele é a manguara vergando-lhe a coluna, e dum lado e do outro do pau resistente galinhas iam dependuradas de cabeça para baixo. As pobres soltando uns cacarejos leves, numa aceitação inevitável da vida madrasta.

Eu ouvia os adultos comentando que um homem de negócio assim deveria providenciar burros de carga, um carro de boi ou até mesmo um carro (uma Rural, por exemplo, que era muito comum na época). Um Fusca não serviria para caber tantas coisas. E diziam isso penalizados do exausto trabalhador, que vivia do suor do seu rosto e com peso tamanho sobre o lombo como se fosse um animal feito para esse destino.

O que me causava pena mesmo era ver as galinhas suspensas, suas pernas cruzadas e amarradas com embira na manguara, seus olhos ora abertos ora fechados, seus bicos entreabertos e elas resfolegando provavelmente de sede. Nem água deviam tomar no longo caminho que tinham de perfazer. Aposto que, quando vendidas, já eram quase defuntas. E me assustava todos vendo aquilo como coisa normal, como coisa que a vida fez assim e pronto.

Não critico o homem por seu trabalho. Afinal, era honesto, pagava a todos pelos “produtos”, regateava os preços, mas pagava. Não roubava de ninguém. E ademais, sei disto, naquele tempo certas coisas eram “normais”. Para os meus olhos tão estrangeiros dos costumes, elas não eram naturais desse modo. Meus olhos já eram meu coração. E no meu peito de criança já me vinham perguntas a questionarem dores e sofrimentos desnecessários.

Depois de um certo tempo o tio Zezinho passou a sofrer mais do que já sofria. Parou de ir ao nosso povoado. Dores de cabeça constantes, uma hipertensão que lhe fazia os passos mais lentos. Nada mais daquele homem alto surgindo lá em cima na estrada. Nada mais dele descendo a trilha até o terreiro da cozinha de nossa casa. Nada mais do seu perfil dobrando-se debaixo dos sacos de milho ou de fubá, sob os balaios com palha e ovos caipiras ou ainda por baixo de galinhas cansadas de dar a vida para o ser humano.

Num dia certeiro chegou a notícia. O homem ajudava sua esposa, a tia de meu pai, a colher roupas do varal. Sentira uma forte dor de cabeça, caíra e não se levantara para nunca mais. Aí vi que ele não voltaria mais com o suor do seu rosto para prosear com todos, para tomar café com os compadres e comadres, para abençoar os que lhe pediam benção e para comprar os produtos da nossa terra.

De fato, ele nunca mais voltou mesmo. No entanto, guardo até hoje seu retrato na minha memória. Está aqui nos meus pensamentos, onde ainda o vejo vergado sob galinhas tentando respirar, elas e ele. Relembro-o, mesmo que seu rosto esteja delineado nas sombras profundas do tempo.

Comentários

  • Author

    Evaldo Balbino chorei, foi muito trabalhador e honesto, essa crônica me fez lembrar o quanto ele sofreu


  • Author

    Leonice, boa tarde. Sei disso. E se esta crônica a tocou, é porque ela cumpre um de seus papéis: o resgate da memória dos nossos entes queridos. Um grande e afetuoso abraço!


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