Trilha sonora

Música para confortar a quarentena

01 de Abril de 2020, por Renato Ruas Pinto 0

Tempos difíceis, de apreensão e preocupações com a saúde, com o sustento e com o futuro. Nestas horas, só uma boa música para esquentar a alma. “Vinum et musica laetificant cor”. O vinho e a música alegram o coração, já diziam os romanos (a tradução é cortesia do meu pai, o Rosalvo). Sobre o vinho, deixo para a Amana Castelo Branco, do Casal Gastrô-MG, para falar a respeito. Já sobre música, posso dar algumas sugestões para alegrar a quarentena. Confira algumas dicas de ótimos discos para se ouvir nestes dias.

“Caravanas”, Chico Buarque: já faz um tempo que o mestre da canção, e um dos maiores compositores brasileiros, diminuiu o ritmo de suas produções musicais. Enquanto se dedica a outras artes, como a literatura, os seus lançamentos de álbuns têm sido cada vez mais espaçados. Porém, quando sai uma novidade, é certeza de coisa boa. Em “Caravanas”, de 2017, Chico nos brindou com mais um álbum autoral de altíssima qualidade em suas letras e melodias. Chico continua com a pena afiada e com musicalidade apurada, como os arranjos belíssimos do disco mostram.

“Cantante”, Mariana Nunes: uma das mais belas vozes da nova geração de cantoras, Mariana Nunes acabou de lançar “Cantante”, um disco lindíssimo onde mostra a qualidade e precisão do seu canto e interpretação. A produção é assinada pelo respeitado Jaques Morelenbaum e reúne nos instrumentais um time de feras como Lula Galvão (violão), Jorge Helder (baixo) e Cristóvão Bastos (piano), além de convidados como Ed Motta. Com certeza é um trabalho que preciso dedicar tempo para uma resenha mais elaborada, mas fica a dica. “Cantante” é um ótimo exemplo para provar o que escrevo sempre nesta coluna: a música brasileira continua viva e emocionando.

Os discos acima – e outros que recomendarei em breve – estão disponíveis nas plataformas de streaming como Spotify e Deezer. Aproveitem o tempo da quarentena para ouvir com calma. Ouvir um álbum inteiro é um hábito que estamos perdendo, mas que é muito legal e importante, especialmente quando grandes artistas pensam sua obra com cuidado e carinho.

Garimpeiros de músicas

17 de Marco de 2020, por Renato Ruas Pinto 0

Nas minhas andanças “internéticas”, descobri mais um ótimo canal sobre música no YouTube, o “Alta Fidelidade”, do jornalista e escritor Luiz Felipe Carneiro. No canal ele apresenta notícias sobre música, resenhas de discos, entrevistas com artistas e profissionais de música e outros assuntos. Como escrevi em outra coluna, o YouTube se tornou um terreno fértil para canais dedicados a essa nobre arte, com canais diversos e com rico material para quem gosta do assunto. Além do “Alta Fidelidade” e os que citei na outra coluna, tenho seguido também os canais “Kazagastão” e o “Music Thunder Vision”, ambos de ex-VJs da MTV Brasil, o Gastão Moreira e o Luiz Fernando Duarte, o Thunderbird.

Mas, voltando ao “Alta Fidelidade”, assisti a duas entrevistas interessantes com personagens importantíssimos na pesquisa e no resgate de capítulos importantes da música brasileira: Charles Gavin e Marcelo Fróes. O primeiro é mais conhecido por ter sido o baterista dos Titãs em sua fase de maior sucesso e, mais recentemente, como apresentador do excelente “O Som do Vinil”, exibido no Canal Brasil. O segundo é um ex-advogado ligado ao mundo da música há muitos anos e fundador do selo “Discobertas” e da “Sonora Editora”, ambos responsáveis por lançamentos excelentes de discos e livros. Eles se especializaram em revirar arquivos de gravadoras atrás de gravações originais de discos importantes e de material de estúdio descartado, além de raridades, como gravações de ensaios, fitas com as primeiras versões de músicas (as chamadas fitas demo, de demonstração) ou mesmo gravações caseiras ou feitas em shows.

A parte visível desse trabalho são os relançamentos, sejam de CDs individuais ou caixas de discos, cujo acabamento pode ser simples (um mero envelope para alguns CDs) ou até mesmo em formatos mais luxuosos. Charles Gavin, por exemplo, no começo dos anos 2000 lançou a coleção “Dois Momentos”, na qual uma série de trabalhos clássicos voltou ao mercado em CDs que traziam compilados, na ordem dos originais, dois álbuns de um artista ou grupo. Criticado em parte pelo aspecto gráfico, que não valorizava as capas originais (as duas capas vinham em um tamanho minúsculo na frente do CD), o projeto teve os méritos de oferecer os discos a preços populares e, principalmente, apresentar às novas gerações trabalhos há muito fora de catálogo. Fróes, por sua vez, tem no currículo um número enorme de caixas e de lançamentos de raridades, com destaque para os trabalhos com os acervos de Gilberto Gil e de Renato Russo e a Legião Urbana.

A parte invisível – e hercúlea – dessas iniciativas são as incontáveis horas de audição de fitas e as negociações sem fim com artistas, herdeiros, gravadoras e seus advogados. As fitas originais estão, em muitos casos, perdidas em prateleiras e o grande desafio é a quantidade de material não catalogado. Inúmeras caixas de fitas não possuem nenhuma identificação e a solução é ouvir uma por uma. Esse processo permitiu, por exemplo, o lançamento de um show ao vivo de Caetano Veloso acompanhado da renomada banda Black Rio, gravado em 1978, e que o próprio artista ignorava a existência da gravação. O disco só veio à tona em 2002 graças ao trabalho paciente de Gavin, que encontrou e trabalhou as fitas.

Fróes e Gavin são unânimes em apontar que há vários tesouros não lançados, seja porque artistas ou gravadoras não quiseram tocar alguns projetos para frente por razões diversas (falta de interesse, previsão de baixo retorno financeiro e outras), seja porque há material por ser descoberto. Porém, ambos fazem um alerta importante: uma parte significativa do acervo fonográfico nacional se encontra armazenada em um único local, uma firma terceirizada, e as condições e os cuidados não são ideais. E o fato de estar tudo junto faz correr um calafrio na espinha quando se lembra de eventos recentes, como o incêndio do Museu Nacional. De todo modo, fica a torcida para que esses e outros garimpeiros continuem nos trazendo trabalhos de qualidade e nos mostrando outras faces da nossa música.

Rock e autenticidade

21 de Janeiro de 2020, por Renato Ruas Pinto 0

Hoje temos vários canais para ouvir música: CD, vinil, mp3, streaming (Spotify e outros) e, curiosamente, até o YouTube, um serviço que nasceu dedicado ao vídeo, mas que hoje é muito usado para se consumir música. Porém, por melhor que seja seu aparelho de som ou fone de ouvido, na minha opinião, nada supera a experiência de se ouvir música ao vivo. O show é a hora da verdade. É quando o cantor mostra suas qualidades ou se vira, mesmo com algum problema na garganta. Ou quando o grupo mostra seu entrosamento e vontade – ou a falta de – de empolgar seu público. Em dezembro, tive a felicidade de ir a um show que surpreendeu e me fez pensar sobre a relação do artista com sua música e público. O show em questão foi de uma banda associada ao nosso rock dos anos 80, a Plebe Rude.

A Plebe Rude foi formada em Brasília no começo dos anos 80 e seus membros faziam parte da “Turma da Colina”, um grupo de jovens que reunia os integrantes dos núcleos de outras bandas que se consagraram na época, como a Legião Urbana e o Capital Inicial. De fato, os anos 80 foram ótimos para o rock nacional e Brasília ganhou fama como celeiro de bandas. A grande influência dos grupos dessa época era o punk. Porém, a Legião e o Capital encontraram caminhos em outras searas, enquanto a Plebe Rude manteve-se fiel ao estilo. Aqui abro um parêntese: para saber mais sobre o rock de Brasília, recomendo assistir ao excelente documentário “Rock Brasília – Era de Ouro”. A Plebe Rude teve alguns altos e baixos, brigas entre integrantes e alguns anos de hiato de 1993 a 1999. Na ativa desde então, preserva dois fundadores: o guitarrista e vocalista Phillipe Seabra e o baixista André X. Em 2004, juntou-se ao grupo o vocalista e guitarrista Clemente, da icônica banda paulista de punk rock Inocentes. O atual baterista, Marcelo Capucci, juntou-se ao grupo em 2011.

O show marcou o lançamento do novo álbum da banda, “Evolução (volume 1) ”. Confesso que nunca fui fã ou conhecedor do trabalho da Plebe Rude. Meu conhecimento se limitava aos seus sucessos, como “Até quando esperar” ou “Johnny vai à guerra”. Atraído mais pela história e reputação do grupo, fui ao show sem saber o que iria encontrar e a surpresa foi excelente. O que vi foi um show de energia alta, uma banda muito bem entrosada e uma sonoridade bem pesada, fiel ao estilo punk. A plateia era em boa parte de fãs apaixonados, que cantaram boa parte das músicas e vibraram com o show. Diga-se de passagem, deu para notar que a banda não conseguiu renovar o seu público por conta da média de idade que se podia observar. Talvez a grande surpresa tenha sido o peso do som e a pegada punk das músicas. Quando se pensa no dito popular “incendiário aos vinte, bombeiro aos quarenta”, percebe-se que ele não se aplica à banda. Além de um show pesado, o espírito contestador do punk ainda se fez visível no teor das novas músicas. Boa parte do repertório veio do novo disco e esta foi outra surpresa positiva: músicas extremamente atuais, letras relevantes e de conteúdo crítico aos dias de polarização política e ataque às artes e ciências em que vivemos.

Isso faz pensar sobre a essência do rock, um estilo do qual se espera contestação e não conformismo. O tempo costuma amansar vários artistas e grupos, de modo que é comum que aquele artista que quebrava tudo no passado hoje tenha uma pegada bem mais leve em suas músicas e performances. Assim, acho muito legal e autêntico quando grupos de rock preservam o espírito do estilo, como os Rolling Stones. Ou os Titãs, que, à medida que a banda encolheu, resgataram a sonoridade mais agressiva do começo da carreira. A Plebe Rude, definitivamente, seguiu nesta trilha sem soar falso ou forçado. Grace Slick, do Jefferson Airplane, há um tempo abandonou a música e disse que não era possível se fazer rock depois de uma certa idade. Felizmente, acho que ela estava errada, como nos provam respeitáveis senhores e senhoras, como Patti Smith ou Keith Richards. E a Plebe Rude, que continua rude e contundente, como o rock precisa ser.

Te recuerdo

18 de Dezembro de 2019, por Renato Ruas Pinto 0

A música sempre foi uma expressão popular muito forte e uma canalização da voz das massas. Enquanto acontecia um concerto em algum palácio da nobreza europeia medieval, em uma feira popular próxima, muito provavelmente um menestrel cantava canções satirizando seus governantes. É o que chamaríamos hoje de “música de protesto”, termo que ficou popular nos anos 60. Aquela década ficaria marcada por protestos vigorosos em todo o mundo: contra inúmeras ditaduras, contra a guerra do Vietnã, nos EUA, movimentos de independência na África e Ásia e outras bandeiras. A participação da intelectualidade e artistas nas mais diversas formas de luta foi uma constante e a música sempre foi um canal bastante democrático por permitir que a criatividade transformasse a voz e um violão em armas poderosas. Porém, muitas vezes essa militância cobrou preços caros dos seus artistas. Em alguns casos, o maior a se pagar.

Os protestos recentes no Chile, de grande proporção e que já duram várias semanas, trouxeram a lembrança de um artista importante para aquele país e que pagou com a vida pela sua militância: Victor Jara. Jara simboliza como poucos essa força da música como canal de expressão e tem sido comum ouvir as multidões entoando suas canções nos protestos atuais. Victor Jara foi um cantor, compositor e diretor de teatro consagrado em seu tempo e que sempre pautou sua arte pelas causas sociais e pelo resgate da cultura popular chilena. Ao participar de grupos dedicados ao folclore chileno, começou a compor e logo foi incentivado pela compatriota Violeta Parra (autora de clássicos como “Gracias a la vida” e “Volver a los 17”) a seguir com seu trabalho. Foi um dos expoentes nos anos 60 do movimento conhecido por “Nova Música Chilena”, marcado pela recuperação da música tradicional chilena e politicamente engajado.

O Chile teve um respiro democrático e de reformas sociais importantes entre 1964 e 1973 nos governos de Eduardo Frei e Salvador Allende. O governo do último, porém, foi interrompido por um golpe militar cuja primeira ação foi prender e fuzilar sumariamente milhares de potenciais opositores ainda nos primeiros dias do golpe. Victor Jara estava entre estes prisioneiros. Jara já era um artista de renome no teatro e na música, com oito discos gravados. Sua atuação devotada às causas sociais e a proximidade com o governo de Allende, entretanto, foram fatais. Foi barbaramente torturado e teve seus dedos das mãos todos quebrados em um gesto de simbologia macabra de que não iria mais tocar. Na sequência foi metralhado e seu corpo encontrado com mais de quarenta perfurações de bala.

Esta violência desmedida dá a ideia de quanto a cultura e as artes são ameaçadoras para regimes ditatoriais ou de cunho autoritário. É impossível não fazer um paralelo com a nossa ditadura e lembrar de nossos artistas perseguidos, exilados e censurados, como Geraldo Vandré, Chico Buarque ou Caetano Veloso. Ou não pensar na pauta recorrente de combate à cultura e seus agentes promovida pelo governo atual, desde a campanha eleitoral. O fato de o novo presidente da Funarte difundir teorias malucas, como aquela em que coloca os Beatles e Elvis como comunistas trabalhando para destruir o capitalismo, nos demanda posicionamento firme e vigilância, muito além do desprezo e chacota do primeiro instante.

Outra lição que tiramos é a de que a truculência não consegue calar a arte. Victor Jara e sua música retornam em um momento crucial para os chilenos e “Para não dizer que não falei das flores”, de Vandré, foi cantada mesmo no auge da ditadura. Ditadores passam para o lixo da história como merecem, enquanto grandes artistas são celebrados geração após geração. Porém, como diz a música, “é preciso estar atento e forte”. De tempos em tempos aparecem forças para combater as artes, sempre empunhando uma falsa bandeira de moralismo ou em uma suposta defesa da “beleza da arte verdadeira”. Desconfie. E conheça a obra de Victor Jara, que pode ser encontrada nas principais plataformas de streaming.

Bob Dylan incendiário

15 de Outubro de 2019, por Renato Ruas Pinto 0

Adjetivos para descrever ou elogiar Bob Dylan não faltam. Um dos artistas pop mais celebrado de todos os tempos, ele já tem seu nome gravado com destaque no panteão dos grandes da música moderna. Seu trabalho influenciou gerações de músicos e, como se isso não fosse o suficiente, ainda ganhou em 2016 o Prêmio Nobel de literatura pela qualidade das suas letras e livros escritos. Recentemente, ganhamos nas telas um presente e tanto para entender a extensão e a força do trabalho de Bob Dylan, o excepcional documentário “Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story”, do renomado diretor Martin Scorsese, disponível no Netflix.

Bob Dylan já era um artista consagrado quando sofreu um grave acidente de moto em 1966 e se afastou das turnês até 1974, quando voltou aos palcos com sua banda tradicional, a The Band, para tocar em grandes estádios lotados. No ano seguinte, entretanto, Dylan lançou um projeto inusitado. Ele queria fazer uma turnê em estilo quase mambembe, como se fosse uma espécie de circo ou show de variedades. Dylan convidou alguns músicos amigos, como Roger McGuinn, dos Byrds, e a antiga parceira, a incomparável Joan Baez. Abriu mão da competente The Band e recrutou uma banda bem menos qualificada e saíram, literalmente, pela estrada com alguns trailers e um ou outro caminhão levando um mínimo de equipamento.

Ao invés de grandes centros e estádios enormes, os shows aconteceram em cidades do interior e pequenos teatros, em visível tentativa de retorno às origens. No lugar de shows cronometrados e com repertórios rigorosamente iguais, interpretações livres e músicas escolhidas muitas vezes no palco ou atendendo a pedidos da plateia. De acordo com os músicos, Dylan mudava as interpretações das músicas a cada show de forma absolutamente inesperada, fazendo com que a banda precisasse estar sempre atenta e pronta para se adaptar no palco.

O resultado desse espírito de liberdade e criatividade foi um Dylan completamente à vontade no palco e com interpretações incendiárias de seus clássicos e de algumas músicas novas que apareceriam no excelente álbum “Desire”, lançado no meio da turnê. Bob Dylan aparece no palco como se estivesse no auge de sua forma, com uma presença de palco quase hipnotizante e que foi brilhantemente capturada na filmagem. Há mais energia no olhar de Dylan nesses shows do que em muito disco de rock que se ouve por aí. A veia militante e de protesto de Dylan também estava de volta e, durante a turnê, ele estava engajado na campanha pela inocência de Rubin “Hurricane” Carter, boxeador que passou quase vinte anos em uma prisão injustamente, em uma história contada sem medo na incrível canção “Hurricane”, escrita por Dylan.

E o documentário? Recomendo muito por uma série de motivos. Scorsese soube costurar as imagens gravadas na época e contar a história de uma forma muito interessante. Dylan estava dirigindo um filme e aproveitou para documentar a turnê e seus bastidores. Scorsese adicionou um toque interessantíssimo ao inserir no filme algumas histórias e depoimentos que não são reais, mas que convencem e fazem com que seja quase impossível separar a ficção da realidade. Eu mesmo não me toquei disso quando vi pela primeira vez e somente soube das partes ficcionais quando comecei a pesquisar sobre a turnê e o filme. Porém, não vou antecipar aqui o que não é verdade. Deixo para você assistir ao filme e fazer seu julgamento. Já antecipo que uma pesquisa rápida em artigos vai contar a verdade. As cenas de bastidores são interessantíssimas por conta dos personagens importantes que Dylan reuniu à sua volta, como o poeta Allen Ginsberg ou a cantora Joni Mitchell.

Finalmente, as apresentações de Dylan são, como já mencionei acima, memoráveis. Enfim, é um documentário com uma história e tanto a ser contada e, ainda por cima, com músicas sensacionais no meio. Não tem como dar errado.