Mais de 600 anos depois, conquista de Ceuta por portugueses ainda fascina


Especiais

José Venâncio de Resende0

Porto estratégico no Estreito de Gibraltar

O brasão na bandeira municipal hasteada nos prédios públicos ou gravado no piso da Praça de África, em frente à Prefeitura, é uma das marcas da presença portuguesa, nos séculos 15 a 17, na cidade portuária de Ceuta, um enclave ibérico em Marrocos, no estreito de Gibraltar. Outros sinais da presença lusitana são as Muralhas Reais, a Catedral de Nossa Senhora da Assunção e a imagem de Nossa Senhora de África no santuário de mesmo nome.

Em 1668, Ceuta tornou-se espanhola mas apenas em 1978, com a nova constituição, foi reconhecida formalmente como parte integrante de Espanha e, em 1995, ganhou o estatuto de cidade autônoma. Nos dias de hoje, faz parte da estratégia da Espanha no Mediterrâneo para limitar a entrada na Europa de barcos com imigrantes ilegais africanos e combater o tráfico de drogas.

Ceuta tem pouco mais de 80 mil habitantes. Acredita-se que sua população tenha origem nos marroquinos bérberes, um dos povos mais antigos do continente africano, na maioria muçulmanos. No cotidiano, chama a atenção a presença de mulheres, em seus trajes convencionais – residentes ou trabalhadoras/compradoras oriundas do outro lado da fronteira.

O ponto inicial da linha regular de ônibus que faz o trajeto até a fronteira de Marrocos está sempre apinhado de muçulmanas, com sacolas cheias nas mãos, aguardando pacientemente na fila para tomar os coletivos até a fronteira (a cerca de 2 km). Segundo informações locais, a mercadoria comprada é para ser revendida em Castillejos (ou Fnideq), a cidade marroquina mais próxima, a 8 km de Ceuta.

Ceuta é uma cidade cosmopolita, onde é comum nas ruas ouvir pessoas conversando em espanhol e árabe. Nota-se também, pela babel linguística, o afluxo de turistas de outros países que ali chegam em grande número.

DNA português

É fascinante! Até hoje, historiadores ainda discutem as motivações que levaram o rei D. João I a enviar ao Mediterrâneo uma expedição militar de grande dimensão para a época, comandada pelo Infante D. Henrique, para conquistar Ceuta. Foram motivações militares, políticas, geoestratégicas, econômicas, religiosas, de ocupação da nobreza feudal desocupada e de afirmação nacional e internacional da família real perante ameaças de invasão de Castela? Ou foi um pouco de tudo?

Uma coisa parece certa: a expedição foi planejada com anos de antecedência (inclusive recebeu autorização papal) e Portugal estava de olho no entreposto comercial estratégico, que era Ceuta, para o comércio de especiarias, tecidos e outras riquezas do Oriente, de cereais de Marrocos e ouro do Sudão. Além disso, era uma base naval no Estreito de Gibraltar (porta do Mediterrâneo), cuja posse representava reconquista de territórios muçulmanos e de execução da primeira etapa do "Plano das Índias". Começava assim a surgir uma "potência mundial" que iria "controlar o comércio global durante mais de 100 anos, através da criação de um império marítimo em rede nos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico", de acordo com o historiador Rui Duarte Silva*.

De qualquer forma, a conquista de Ceuta e os descobrimentos revelam uma espécie de "DNA do ser português", segundo Jorge Nascimento Rodrigues, jornalista do jornal Expresso, e Tessaleno Devezas, professor da Universidade da Beira Interior (UBI)**. Este DNA que os autores chamam de "Matriz das Descobertas" pode ser dissecado em dez pontos fortes que ajudariam os portugueses do século 21 a "traçarem o seu caminho profissional e coletivo". São eles: o intento estratégico, a vocação universalista, o comprometimento científico, a gestão do conhecimento, o olhar para "fora da caixa" (out of the box) de modo a ser original e a surpreender, o domínio da informação assimétrica (deter informação superior aos rivais), o incrementalismo (tentativa/erro e correção pragmática), o espírito crítico, a "manha" geoestratégica e o improviso organizacional (vantagem comparativa numa economia global em permanente mudança).

Escavações

Escavações arqueológicas de 2005, ao lado da Catedral de Nossa Senhora da Assunção, documentam vestígios da cidade de Ceuta desde o século 8 a.C. Cabanas de planta oval com paredes de adobe sobre muretas de pedras do início do século 7 e urbanização em meados do mesmo século. No final do século 7, aparecem construções de estruturas de adobe aparentemente relacionadas com atividades industriais. Restos de cerâmicas, alguns metais e uma significativa mostra de fauna marinha e terrestre indicam progressiva influência do mundo fenício ocidental neste local.

Já o Museu da Basílica Tardorromana, inaugurado em 2006, reúne “restos cristãos” desta margem do Mediterrâneo do século 4. A basílica seria um edifício formado por uma única sala retangular e por duas naves laterais, em pedra da região. Os estudos realizados mostram um monumento inacabado, seja por acontecimentos históricos, seja por ter sido usado como cemitério. Por sua origem “funerária”, não está voltada para o Oriente, ao contrário do preceito dos primórdios do cristianismo sobre os edifícios litúrgicos. O museu também propõe um percurso desde a pré-história até a época de dominação islâmica.

Monumentos

O Conjunto Monumental das Muralhas Reais era o limite da Ceuta antiga, segundo o guia turístico da cidade. Atravessando as muralhas, encontra-se o fosso real, navegável desde a época de dominação portuguesa. A leste do fosso, estão construções mais antigas e, a oeste, as construções mais modernas. A Ponte de Cristo, que une o Bastião dos Maiorquinos e as Muralhas, tinha sido, na antiguidade, levadiça.
Em 1421, o Infante D. Henrique, “O Navegador”, enviou a imagem de Nossa Senhora de África a Ceuta e ordenou que, a partir deste ano, fosse venerada. Também ordenou que fosse construído um templo. Assim, surgiu o Santuário de Nossa Senhora de África. A igreja é barroca e de planta retangular, com três naves (a central é a mais larga e alta). No interior, destaca-se o retábulo barroco situado na capela-mor e executado em madeira talhada e dourada. O retábulo está presidido pela imagem, que corresponde ao modelo da Virgem da Piedade.

A Catedral de Nossa Senhora da Assunção é uma antiga mesquita, adaptada a partir da criação da diocese de Ceuta, em Agosto de 1415, após a conquista portuguesa. Em 1665, o edifício da catedral foi considerado em ruínas e encerrado. Recuperado entre 1686 e 1726, o templo foi finalmente consagrado. Trata-se de edifício de planta retangular, com três naves. Tem estilo classista e a sua fachada está composta por um módulo central, ladeado por duas torres gêmeas e rematado por um frontão triangular.

Breve história

Ceuta é um enclave espanhol no território de Marrocos no norte da África, em frente da cidade espanhola de Algeciras e do território britânico ultramarino de Gibraltar, do lado oposto do Estreito de Gibraltar.

No Museu da Basílica Tardorromana, encontra-se uma breve história da Ceuta antiga. Nesta época, a Espanha muçulmana fazia parte de um califado que se estendia de Gibraltar à Pérsia.

No período de 709 a 931, denominado “séculos das trevas”, bérberes liderados por Maysara revoltam-se contra o governo de Damasco. As tropas sírias de Balyy ibn Bashir foram obrigadas a se refugiarem em Ceuta, onde foram sitiadas durante meses pelos exércitos rebeldes. A cidade foi arrasada, dando início a um período de abandono.

No período 931-1013, Er Rida, o último dirigente da dinastia Banu Isam, é deposto de Ceuta pelas tropas de Abd al-Rahman III, da dinastia Omeya Andalusí. A cidade é fortificada e se converte no principal porto do outro lado do Estreito de Gibraltar, na luta contra o califado fatimí e seus aliados no norte da África.

No período 1016-1084, o desmembramento do califado omeya provoca turbulenta crise em Ceuta. O governador Ali ibn Hammud, depois de obter o título de califa em Córdoba, é assassinado. Em 1061, Suqut al-Bargawati toma o poder e se proclama senhor de Tanger e Ceuta, acabando com o período de instabilidade. Em 1064, Ceuta é vitoriosa na luta contra a dinastia abadí (os Banu Abbad) de Sevilha pelo controle do Estreito de Gibraltar. Segue-se um período de grande desenvolvimento industrial.

No período 1084-1145, os almorávides, com a ajuda da frota sevilhana, ocupam Ceuta, que assim se converte na base de operações para as expedições contra o al-Andalus (nome dado à Península Ibérica pelos seus conquistadores muçulmanos). O seu porto adquire papel de grande importância e a cidade vive importante desenvolvimento industrial. Em 1106, Ali ibn Yusuf, nascido em Ceuta, é o novo sultão de um império que se estende desde o rio Tajo (na península ibérica) até o Saara.

No período 1145-1242, Ceuta é submetida aos almohades depois que notáveis da cidade derrotam o emir Almorávide. Em 1148, uma revolta leva o cadí Iyad ao exílio e batalhas que se seguem levam ao fim da hegemonia almohade. Verifica-se grande desenvolvimento comercial com os territórios cristãos. A cidade vive breve tempo sob o domínio do rebelde Ibn Hud e do rico comerciante al-Yanasti. Em 1237, restaura-se em Ceuta o poder almohade e, em 1242-1249, passa ao domínio da dinastia hafsí, de Tunes.

No período 1249-1327, os hafsíes são expulsos e  Abu-I-Qasim al-Azafí chega ao poder em Ceuta, instaurando a dinastia dos azafíes. Ceuta vive ampla autonomia, domina a navegação do Estreito, converte-se num dos principais portos comerciais do Ocidente e goza de enorme prestígio no âmbito cultural. Introduz-se a celebração da festa do Profeta que alcançará grande difusão.

Em 1273, uma frota mariní ataca Ceuta e os azafíes colaboram com os mariníes para garantir a independência. Mas, em 1305, os “nazaríes” tomam Ceuta e desterram a família azafí a Granada. Em 1309, os mariníes reconquistam Ceuta e a cidade é restaurada aos azafíes.

No período 1327-1415, o sultão mariní Abu Said assume pacificamente a cidade. Ceuta torna-se a base para as intervenções mariníes em al-Andalus. Em 1368, a frota mariní de Ceuta colabora com os nazaríes no cerco a Algeciras do outro lado do Estreito. Em 1384, os próprios nazaríes ocupam Ceuta que é recuperada pelos mariníes em 1387.

Em 21 de Agosto de 1415, uma frota portuguesa de mais de 200 navios e 20 mil homens, enviada por D. João I, conquista a cidade de Ceuta e dá início à expansão ultramarina. A cidade é reconhecida como possessão portuguesa pelos Tratados de Alcáçovas (1479) e de Tordesilhas (1494).

Na dinastia dos Filipes (“União Ibérica”) entre 1580 e 1640, Ceuta manteve a administração do Reino de Portugal. Mas, quando da Restauração Portuguesa, não aclamou o Duque de Bragança como rei de Portugal, mantendo-se espanhola. A situação é oficializada em 1668 com a assinatura do Tratado de Lisboa entre os dois países, que põe fim à guerra da Restauração.

*A globalização foi inventada pelos portugueses há 600 anos. Expresso, 21/08/2015. Link: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-08-21-A-globalizacao-foi-inventada-pelos-portugueses-ha-600-anos.

**As Lições dos Descobrimentos. Centro Atlântico, 2013

LINK RELACIONADO:

Gibraltar: https://www.facebook.com/josevenancio.resende/media_set?set=a.984513798237414.1073741843.100000364093555&type=3


 

Deixe um comentário

Faça o login e deixe seu comentário