Portugal, um ano depois dos grandes incêndios que mataram 115 pessoas

Professora Helena Freitas, da Universidade de Coimbra, defende medidas mitigadoras, atualização da convenção de bacias hidrográficas Portugal-Espanha e aplicação da lei europeia da água.


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José Venâncio de Resende 0

O outro Portugal (Foto: Blog Jardins e Parques de Portugal)

Há um ano, em junho de 2017, uma onda de incêndios trouxe pânico ao interior de Portugal. As chamas começaram no município de Pedrógão Grande, interior do distrito de Leiria, e se alastraram a concelhos vizinhos. De acordo com relatório da comissão técnica independente que analisou os incêndios, foram 66 mortos e 253 feridos, milhares de casas e alguma centenas de empresas arruinadas e cerca de 53 mil hectares de território devastados, dos quais 20 mil hectares de florestas.

Em outubro do mesmo ano, novos incêndios resultaram em 49 pessoas mortas e cerca de 70 feridos na região Centro (principalmente nos distritos de Coimbra e Viseu). O fogo destruiu ainda, total ou parcialmente, cerca de 1.500 casas e mais de 500 empresas. O ano de 2017 foi “o mais trágico desde que há registos”, segundo a comissão.

Portugal foi atingido por grave seca, principalmente na região de Viseu, nem bem tinha passado o pior momento dos incêndios. Era muito comum ver nos jornais de TV cenas de reservatórios vazios, cidades abastecidas por caminhões pipas e nascentes de rios ibéricos (como Douro e Tejo) praticamente secas.

A possibilidade de agravamento da situação, dada a insuficiência de chuvas, levou especialistas a defenderem medidas drásticas de restrição ao uso de água, inclusive na agricultura, além do reforço no armazenamento dos reservatórios, visando à melhor gestão e utilização mais eficiente da água. Há especialistas que associam o problema da seca à erosão dos solos, que ganhou relevância com os incêndios florestais.

“Dois Portugais”

As catástrofes do ano passado mostram um país dividido em “dois Portugais”, como tem afirmado, insistentemente, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. O Portugal do litoral – onde se concentram maior população, investimentos, imigrantes e turistas - e o país do interior, pouco habitado, população envelhecida e zona rural crescentemente ocupada por monoculturas como a de eucaliptos.

De fato, a distribuição populacional no território português é “muito assimétrica, com tendência à litoralização que se acentuou nas últimas três ou quatro décadas”, diz a professora Helena Freitas, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra (UC) e detentora da Cátedra da Unesco em Biodiversidade. Nesta distribuição “absurda”, um terço dos portugueses vive em dois terços do território.

Os dois terços do território, que foram a maior expressão rural país, vem se despovoando desde os anos 60 do século 20, explica Helena Freitas. A maioria desses habitantes – que já não tem atividades familiares e de multi-rendimentos - tomou o destino do litoral ou de outros países. Concentra-se em áreas metropolitanas entre Braga e Setúbal, principalmente em Lisboa e no Porto.

Na área rural, sobrou uma população envelhecida. A agricultura familiar (de baixo rendimento) deixou de ser competitiva e o país apostou no setor agroindustrial, diagnostica a professora da UC. Há nítido contraste entre as regiões acima e abaixo do rio Tejo.

A população de Portugal aumentou de 8,5 milhões, em 1960, para 10,4 milhões de pessoas, atualmente. O país deve retornar aos 8,5 milhões de habitantes em 2060, “com uma distribuição espacial e de idade muito diferente”, diz a professora da UC.

Tejo como divisor

Do ponto de vista econômico, nas regiões norte e centro, estão os minifúndios, com área inferior a cinco hectares, e as plantações industriais cujas espécies florestais são o eucalipto (para as indústrias de papel e energia) e o pinheiro bravo (para a indústria de móveis). O setor é dominado pelos grupos empresariais Navigator e Altri, que gerem diretamente 60 mil hectares e oferecem mudas para pequenos proprietários privados, que ocupam área total de 740 hectares.

Estas últimas, em geral, são propriedades “abandonadas”, de pequenos proprietários ausentes ou idosos, que assim conseguem extrair algum rendimento sem grande trabalho. Os incêndios vieram colocar um alerta sobre esta situação, observa Helena Freitas.

Já ao sul (abaixo do rio Tejo) se encontram as maiores propriedades, que apostaram no sistema agrossilvopastoril (culturas mediterrâneas como sobreiro para cortiça e azinheira para alimentar porcos e para a produção de madeira) – a chamada “paisagem alentejana”.

Cenários

As condições estão mais favoráveis à ocorrência de incêndios, devido ao cenário climático e ao abandono das propriedades, alerta Helena Freitas. As regiões próximas ao Oceano Atlântico apresentam condições atmosféricas mais favoráveis à produtividade florestal, e por saber disso o setor industrial cobiça estes solos melhores e mais produtivos. Portugal e Galiza (Espanha) são territórios com situação parecida – não apenas os mesmos cenários de produtividade florestal como também a mesma suscetibilidade em termos de desordenação territorial.

Segundo a professora da UC, este quadro geral é agravado pela ausência de cadastro nacional, o que dificulta a identificação das propriedades, torna “alarmante” o nível de desordenamento do território e acaba favorecendo os interesses econômicos. Portugal é um dos três países do mundo onde apenas 2% do território são públicos, ou seja, o Estado só tem responsabilidade sobre estes 2%.

De qualquer forma, cerca de 23% do território estão consignados à conservação da natureza (7% são áreas protegidas e o restante está consignado à Rede Natura 2000 ou rede ecológica europeia). Aqui predominam as espécies nativas, com as outras espécies fortemente condicionadas, explica Helena Freitas. Nessas áreas, privilegia-se a biodiversidade nativa e se condiciona fortemente a introdução de espécies exóticas. Assim, tendencialmente se protegem elementos da flora e da fauna da região. Porém, nos últimos anos, “temos descuidado muito da preservação da natureza”, alerta a professora da UC.

Rios ibéricos

Portugal é cortado por rios ibéricos, que nascem na Espanha e formam quatro bacias hidrográficas (Tejo, Douro, Minho e Guadiana), que correspondem a quase 60% do território nacional. Essas “bacias partilhadas” obedecem a uma convenção de partilha que tem um conjunto de obrigações orientadas para um “caudal ecológico mínimo”, para garantir a vitalidade dos rios.

Esta convenção é dos anos 60 do século passado, e não mais está a garantir esse caudal (quantidade e qualidade), principalmente dos rios Tejo e Guadiana, alerta Helena Freitas. “Claramente, precisamos rever a convenção.”

Portugal está pior porque à jusante, assinala a professora da UC. “O Rio Tejo, por exemplo, é quase uma cloaca de Madrid, além de outras fontes poluidoras no caminho.” Ela se refere tanto à poluição urbana quanto à derivada das atividades agrícolas. O Rio Guadiana é sobretudo “vítima” do desvio para a agricultura na Espanha e em Portugal.

Nova convenção

Todos percebem que é preciso rever a convenção de partilha, de maneira a torná-la mais ajustada aos nossos tempos, mais ecológica, observa Helena Freitas. Esta revisão pressupõe atuar na regeneração ecológica das bacias hidrográficas, fiscalização e punição mais rigorosa das fontes poluidoras e alteração da forma de avaliação dos caudais.

Mais importante, ainda, é a aplicação da lei europeia da água (Diretiva Quadro da Água 2000), acrescenta a professora da UC. Esta lei abriga uma avaliação regular da qualidade das massas de água (rios, lagos, charcos, aquíferos etc.), reativa conselhos de bacias hidrográfricas (que reúnem os seus utilizadores), introduz lógicas diferenciadoras do custo da água e monitora a qualidade físico-química e ecológica.

Mitigação

Muito precisa ser feito, em termos econômico, social e ambiental, para se alcançar o equilíbrio, ainda que mínimo, entre os “dois Portugais”, tão insistentemente defendido pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Quanto aos incêndios e secas, para além das medidas emergenciais do governo, tais catástrofes voltarão a acontecer, cada vez com maior frequência e em maiores proporções, lamenta a professora da UC. Daí a importância de medidas mitigadoras.

“Portanto, temos de preparar as pessoas para situações de risco, preparar a floresta para minimizar o risco – torná-la mais biodiversa e alterar a sua composição progressivamente – e destinar mais recursos técnicos e humanos no terreno para apoiar a conversão da floresta daqui pra frente.”

 



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