A Teia do Mundo

Unhas pintadas

24 de Abril de 2024, por José Antônio 0

A mulher pinta as unhas. Ou pinta as garras? Como felinas cromáticas, sabem arranhar colorido. Cravam cores e matizes na pele vulnerável da vítima masculina. Então a corrente sanguínea vira esmalte.

E as tonalidades? E os nomes para as tonalidades? Covardia para os meus pobres bastonetes.

Foi num jantar que reparei quando ela erguia suavemente a taça de vinho até os lábios:

– Bonito o esmalte!

– Nunca fui santa...

– Hein?

– É a cor do esmalte: “Nunca fui santa”.

Outra noite, no concerto sinfônico. Ela se virou para mim... e falou baixinho e insinuante:

– Beijo roubado...

A ocasião fez o ladrão. Ela ficou brava:

– O que é isso? Ficou maluco? Estamos num concerto. Tem plateia aqui. Onde já se viu? Beijar...

– Mas você disse...

– “Beijo roubado” é o nome do esmalte.

Afundei-me na cadeira, mais vermelho que nariz de palhaço... que, por sinal, também é nome de esmalte.

Musas fiandeiras do coração do homem...

Mãos ágeis... mãos sagazes... mãos ternas... mãos sádicas...

Mãos esmaltadas.

As Mãos de Eurídice roubaram o pobre Gumercindo Tavares com o esmalte “Desejo”. Depois, Eurídice pintou as unhas com o “Destino dos sonhos”. E o roubado Gumercindo abandonou a família para enricar uma aventureira. Quando o Gumercindo acordou, já era tarde. Suas próprias unhas já estavam roídas e ele afundado na miséria. Eurídice, com o esmalte “Saia justa”, assim também deixou o homem. O final da história foi esmaltado com “Ponta de ira”: a acetona amargurada de Gumercindo arrancou a tinta viva da amante.

Ariadne, com unhas do esmalte “Avista”, deixou o fio para Teseu avistá-lo e sair do labirinto. Penélope, com o esmalte “Deitar na rede”, passou anos tecendo e destecendo a mesma coisa todos os dias à espera de Ulisses.

A malfadada Eva, com o esmalte “Causei”, fez jus à cor da unha. Vai ver que não viu que a serpente usava o esmalte “Malícia”...

Unhas coloridas... São belas. São perigosas. Sabem traçar possibilidades nos riscos. Sempre que a unha pintada coça o meu desejo, eu me entrego aos arranhões da “Garota Verão” e... “Deixa beijar”!

A mulher pinta as unhas, as garras e as guerras.

E vencem.

Conversa de cacófonos

27 de Marco de 2024, por José Antônio 0

– Que tempo! Como tá tu?

– Tô bem. Mas andei passando por cada uma...

– O que foi, amigo? Conta pro Juca aqui.

– Vou falar de maneira franca, Juca.

– Pode meter o pé na jaca, Brito.

– Lembra do meu tio Rodolfo Massa?

– Dono daquele time de futebol que nunca ganha?

– Esse mesmo. Ele me pediu uma mão pra melhorar a equipe.

– Você aceita cada!...

– A primeira coisa que fiz foi ensinar ao time o nosso hino.

– Não percebi cheiro de bola aí.

– Calma! A bola só rolou depois das instruções e do cooper. Só jogaram os com o cooper feito.

– E a moçada marca gol?

– Vencemos os jogos do campeonato. Todos os jogadores marcaram cinco gols... cinco cada um.

– Beleza! Seu tio Rodolfo deu algum dinheiro pra você?

– Nem toca nisso. Mandou procurar ele em casa. Fui. Topei dando com o nariz na porta.

Pô, rapaz, o cara fugiu?

Vez passada eu voltei lá. Falaram que virou vaqueiro lá pros lados do Pantanal. Agora ele toca gado.

– Lute por seus direitos, meu amigo! Você investiu tempo lá. Isso é uma situação que se disputa.

– Tempo tá lá, né? Muito tempo.

Já que tinha de ser assim...

– Tenho uma má sorte.

– Não ponha a culpa nela. Um dia, uma fada ainda aparece em sua vida. De repente, uma herança: e você fica como herdeiro.

– Essa fada... nunca sei quando virá.

– Mudando de assunto, ouvi pela dona Clotilde, sua mãe, que você tá caçando.

– Pois é, tô voltando do mato agora. Pato tinha, mas só peguei pacu.

– Uma minha curiosidade: papel azul... papel creme... Que papel azul é esse aí? Você usa para guardar o quê.

– É pacu sujo.

Sei, tá. E o creme?

– É pacu assado. Assei no mato. É bom não misturar os pacus.

– Bem, vou-me já.

– Eu também. Foi bom bater papo contigo.

– Já ia me esquecendo. Minha filha fez quinze anos. Tá uma gata bela. Fiz uma festa linda para a Noemi Joana.

– Parabéns! Quero ver o álbum dela.

– Até logo! Um dia acho você de novo.

– Até lá vou esperar.

Fui no Itororó

28 de Fevereiro de 2024, por José Antônio 0

Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi a saudade que no Itororó chorei. E a fonte a chorar, xuá... xuágua... E a fonte a chorar, xuê, xuespinho... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, entra nessa roda para não morrer sozinha.

Aproveita, minha morena, que uma noite não é nada. Se não amar agora, vai chorar de madrugada. Abre a janela e deixa o luar entrar para te dizer os desejos prateados de uma noite sem manhã. Vai, coração, tu aprendeste a voar. Ensinei-te a namorar, mas quiseste apaixonar. Vai, coração, tu não me ensinaste a bater. Apanho calado de teu ritmo de carne sangrada.

Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi a vontade que no Itororó cresceu. Vontade de ser anjo barroco, sorriso maroto e olhar santo. Pureza e luxúria, talvez o amor se mostrando nu. Amor ousado e limpo. E a fonte a chorar, xuá, xuasa... E a fonte a chorar, xuê... xuetéreo... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, entra nessa fonte e serás só minha.

Acordei de madrugada, com uma briga debaixo de minha sacada. O cravo gritava ferido e a rosa chorava sem pétalas. Chegou um beija-flor e me disse que o amor é assim mesmo: quando escreve torto, o absurdo se ajeita... quando escreve certo, as linhas ficam tortas. Olhei para baixo e no meu jardim já não havia mais cravos nem rosas.

Fui no Itororó beber água, não achei... achei foi o amor que no Itororó plantei. Nasceu saudade, floriu vontade, frutificou vida. Dentro dela, uma coisinha que um dia irá para debaixo da terra semear lembranças nas distrações do nada. E a fonte a chorar, xuá, xuarte... e a fonte a chorar, xuê, xuespuma... Oh, morena, moreninha linda do meu bem querer, não precisas mais entrar na roda nem na fonte. Dá-me tua mão e gira o mundo ao redor de meu poema. Quero tomar um pileque de espasmo e acordar com ressaca de plenitude.

Samba-lêlê tá doente? Não, samba-lelê foi pra festa. Meu coração é que está com a veia enfaixada, sem poder levantar. Um dia, ele ainda vai de novo no Itororó beber água. E vai achar a morena e dançar com ela na barra da saia.   

ANO NOVO

25 de Janeiro de 2024, por José Antônio 0

Tudo bem que é passagem de ano...

Tudo bem que depositamos a intensidade de nossas esperanças e ansiedades naquele átimo que consegue espremer final e começo...

Tudo bem que é Ano Novo...

Por outro lado, é apenas a passagem de um dia para o outro. É apenas o ponteiro saindo da meia-noite e alcançando a meia-noite e um... como acontece todos os dias. O relógio é o mesmo, nós é que enfeitamos os ponteiros e orquestramos as badaladas. Todo dia tem meia-noite. A meia-noite do final do ano não é diferente. A bem da verdade, o próprio conceito de “ano” nada mais é do que uma convenção.

E o que seria da sociedade sem as convenções? Convenção é sobrevivência.

Precisamos sobreviver, mesmo que isso custe alguns detalhes que fazem a diferença. Por exemplo: renovamos nossas esperanças na passagem do ano. É a convenção. Mas, já pensou se renovássemos nossas esperanças todos os dias com a mesma intensidade com que renovamos na passagem do ano?

Desejamos amor, alegria, paz, saúde e prosperidade às pessoas na passagem do ano. Já pensou se desejássemos tudo isso para as pessoas todos os dias?

Abraçamos nossos semelhantes e lhes entregamos o nosso sorriso e o nosso voto de felicidade. No dia seguinte, nem sequer olhamos mais para alguns que abraçamos. Já pensou se os abraços fossem dados com frequência, acompanhados do voto sincero de felicidade?

Essas incoerências me fazem ficar com um pé atrás quanto à meia-noite da passagem do ano. Investimos na paz, na alegria e no amor somente naquele momento de transição, mas ao longo do ano as coisas ficam exatamente como estavam no ano anterior. É como se semeássemos para que a semente ficasse eternamente sepultada.

Ano Novo talvez não exista. O que deve existir é Ano Renovado. E para renovar os próximos 365 dias, é necessário que haja algumas resistências.

No ano que começa,

quando a pressão for o desânimo, que eu resista e fique de pé, sabendo que o próximo dia jamais repete o dia anterior...

quando a pressão for a puxada de tapete, que eu resista e imponha a honestidade...

quando a pressão for a inveja, que eu resista e veja o que a qualidade do outro acrescenta a mim...

quando a pressão for a descrença, que eu resista e tenha a humildade de deixar Deus falar comigo nos detalhes do dia a dia...

quando a pressão for a violência, que eu resista e faça investimentos de paz...

quando a pressão for o medo, que eu resista e respire profundamente o hálito da coragem...

quando a pressão for a dor, que eu resista, busque o coração do outro e expulse a solidão...

quando a pressão for a ignorância, que eu resista e me comporte com sabedoria...

Mas isso tem que ser feito todos os dias do ano que começa. Renovar o ano é resistir à inércia de viver o Ano Novo comprometido com o Ano Velho. Ano Novo é Ano Renovado.

De Papai Noel

20 de Dezembro de 2023, por José Antônio 0

Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:

– Roupa de Papai Noel.

– O que? Papai Noel? Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?

– Uns trocados a mais, Bibi. O décimo-terceiro vai atrasar, não lembra? Dei meu nome pra vaga de Papai Noel no shopping. Gostaram do meu tipo e me arranjaram serviço pra hoje e amanhã. Do jeito que estou gordo, não vou precisar nem de enchimentos. Além disso, o serviço é simples e folgado: é só ficar assentado numa cadeira, colocar crianças no colo, ouvir pedidos e dar conselhos. RÔ RÔ RÔ!!!

A mulher ouviu a explicação como se estivesse vendo uma rena de cinco patas e dois rabos: um absurdo!

– E essa sua hérnia, Jurinélio? Todo Papai Noel carrega muitos presentes. Você não pode pegar peso.

Era uma hérnia inguinal antiga. Incomodava mesmo. O negócio doía e já estava descendo pra onde não deveria descer. Jurinélio estava de saco cheio.

– Não tem perigo, Bibi. O saco é de brinquedo.

Acabou ouvindo:

– O seu saco é de brinquedo, mas a hérnia é de verdade.

À noite, a mulher ajudou o marido a se vestir de bom velhinho. Faltava somente a barba. Era uma barba de algodão sintético, branquinha e farta.

Bibi olhou o marido em frente ao espelho: gordo, todo de vermelho e com uma grande barba branca. Parecia mais o Karl Marx vestido de Saci Pererê. E foi desse jeito que o Jurinélio se posicionou na praça de alimentação do shopping.

Nenhuma criança se aproximava dele. Transitavam de mãos dadas com os pais, olhavam de longe, davam tchauzinho, sorriam tímidas... mas ir lá ninguém foi. Passavam direto e iam brincar dentro do trenó, humilhantemente colocado ao lado do Jurinélio. O jeito era fazer barulho, aparecer mais. Pegou um sininho e começou a agitar os braços:

– RÔ RÔ RÔ! Feliz Natal! RÔ RÔ RÔ!

Em vão. O trenó em silêncio e parado fazia mais sucesso do que o Papai Noel com hérnia. Jurinélio se sentia um acessório sem muita importância naquele shopping. Sem importância e sem explicação.

Diante do fiasco, a organizadora resolveu dispensar o Jurinélio do dia seguinte e contratou o trenó.

Passaram-se dois dias.

Foi só o Jurinélio chegar da rua e jogar aquela estranha sacola no sofá que a mulher ficou curiosa e quis logo saber do que se tratava. O marido escarrapachou-se no sofá, soltou um longo suspiro e respondeu:

– Roupa de anjo.

– Você ficou maluco, Jurinélio? Pra que isso?

Jurinélio conseguiu uma vaga pra ficar na praça central do bairro distribuindo mensagens natalinas de um supermercado... o Anjo do Natal!

Tudo bem que era um mico alado, mas pelo menos não precisava pegar peso.