Piadinhas sociais
15 de Julho de 2021, por José Antônio 0
A gente vai vivendo e vai aprendendo algumas expressões que se cristalizam na própria convivência social. Muitas delas, inclusive, se tornam uma espécie de ritual de bom humor. Na verdade, são frases vazias, previsíveis e sem graça. São aquelas piadinhas inocentes que a pessoa diz, pensando que está exibindo uma pérola do humor. E a gente tem que rir, mesmo sem ver graça alguma na ostra.
Tentar mexer ou dar outra interpretação para elas pode incorrer no risco da deselegância. O jeito é aguentar essas piadinhas irritantes para continuar a ter amigos.
Você agradece um favor e diz: “Obrigado!” E o cara responde, achando-se o top dos humoristas:
– Obrigado? Não, não é preciso brigar. Não precisa ficar “brigado”.
Você ri, mordendo com raiva o risinho no canto amargo da boca. Ri por cortesia. Se não rir, aí sim, fica brigado.
E quando você vai almoçar na casa de alguém? Na hora da sobremesa, se é pavê, alguém sempre se sai com esta:
– Olha o doce aí, gente! É pavê... mas não é só pavê não, é pra comer também.
Você ri já vomitando o pavê por antecipação.
Mês passado, eu me encontrei com o cunhado do Leovaldo. Depois de uns minutos de conversa, lasquei a pergunta:
– E você? Já se casou?
Lá veio a piadinha manjada:
– Eu não. Ainda não encontrei nenhuma doida.
O humor é uma coisa exigente. Você tem que contar com, pelo menos, três coisas: o conhecimento da situação, o conhecimento de quem vai ouvir e o conhecimento de combinações variadas de ideias, tudo isso movido pela criatividade e pela agilidade de raciocínio.
Por isso que essas piadinhas não funcionam. O cara não percebe que a situação pede novidade, não percebe que o ouvinte quer novidade, não percebe que novas combinações exigem novidade. O resultado é o riso forçado.
Quando alguém me convida para entrar em casa, eu sempre pergunto na cautela: “Tem cachorro aí?”
– Não. Pode entrar. O cachorro que tem por aqui sou eu mesmo.
Que preguiça, meu Deus!
Uma vez, eu tentei dar outra interpretação para um clichê. Não era piadinha. Na verdade, quem fez a piadinha fui eu. E me dei mal. Uma amiga me falava da importância de viver intensamente cada dia, as maravilhas de viver, as surpresas das manhãs... aquelas coisas. No fim, ela colocou a mão no meu ombro e me disse solenemente, como se tivesse declarando o suprassumo da sabedoria:
– Viva cada dia da sua vida como se fosse o último.
E eu respondi:
– Claro! Um dia você acerta.
Ensaiei um riso, mas ela não me acompanhou. Fechou a cara e bateu em retirada, despedindo-se friamente.
Pois é... Expressões que não podem ser mudadas. É pavê.
Menino lembrando uma noite de junho
16 de Junho de 2021, por José Antônio 0
Foi numa daquelas noites de junho, daquelas em que o céu já começa a se vestir de noite lá pelas seis da tarde. As nuvens ficam cor-de-rosa enquanto pelo chão as sombras se mostram compridas, longas iguais à solidão que gosta de acompanhar a gente por toda a vida.
Era uma dessas noites de junho. O vento cortava gelado as costas dos meninos e as pernas das meninas... queimava de frio os dedos finos das moças e as mãos ásperas dos moços. O vento vinha do morro e virava a esquina. Pegava todo mundo de surpresa.
Mesmo assim, com tanto vento e com tanto gelo, o pessoal da vila não se fez de rogado. Saiu todo mundo pra ir às barraquinhas da quermesse. Música tocando no alto-falante, vestidos estampados indo e vindo, rodinhas de rapazes conversando e rindo, meninos e meninas correndo pra tudo quanto é lado, um homem gritando números em uma das poucas barracas, cheiro de quentão embriagando a alegria simples de um povoado que se contentava com a simplicidade das poucas coisas.
Uma das barracas vendia salgados. A outra, doces e canjica. A última, perto do coreto e também cheia de luzinhas acesas, vendia bebidas quentes e fazia jogos de víspora e pescaria. Praça cheia, alegre e aconchegante. Acho que por isso ninguém tinha ficado sozinho em casa. As casas estavam frias e a praça quentinha. Havia vento, mas tinha quentão.
Resolvi tentar a sorte num dos jogos. Na verdade, eu queria era tirar um prêmio na pescaria e entregar pra Ana Clara, que estava na praça havia meia hora, mas no meu pensamento um montão de tempo. Ana Clara caminhava, passava perto da barraca e nem me via. Que vontade de pegar a sua trança e pescar com ela o seu coração...
Levei a mão gelada no bolso e achei lá uma solitária moeda. Fiquei por ali, encarapitado na cerca da barraca, atento à minha pescaria. Pescador de sonho... de sonho mergulhado na serragem e que não precisa de isca pra ser capturado. Fisguei o peixinho e o peixinho escorregou. Fisguei outra vez e o danado voltou pro chão. Na terceira vez, o peixinho veio pra mim. Não é que tinha um anel pendurado nele?
Peguei o anel, soprei a poeira e fui procurar a Ana Clara. Já imaginava sua trança sem Rapunzel, seu sorriso de princesa sem castelo, perdida ali naquele povoado sem grandes perspectivas, porém única e preciosa nas minhas vertigens de infinito.
Lá estava ela! Cheguei perto e... Ana Clara já tinha anel. Não só anel, mas também um namorado. Rapaz que eu nunca tinha visto na vila. Era gente da cidade. Garanto que foi ele quem deu o anel pra ela. O anel que Ana Clara ganhou do namorado não era de pescaria nem tinha poeira de serragem.
Desci os olhos, fechando as cortinas da minha esperança. Voltei pra barraquinha da pescaria. Joguei o anel na serragem, a serragem no meu sonho e pus meu sonho num balão que estava subindo pra sumir.
O vento continuava soprando frio.
O primeiro carro a gente nunca esquece
19 de Maio de 2021, por José Antônio 0
Foi um fusca. Creme. Quando ele chegou, confesso que tive vergonha. Velho, mas conservado (eufemismo cretino para tentar esconder a decrepitude). Tudo naquele fóssil de lata cheirava a baú. Mas, o que fazer? Não sabia dirigir, daí comprei o fusca para aprender.
O instrutor ia até minha casa e saía comigo: ele dirigindo e eu observando. Depois de dois dias assim, o instrutor disse, sempre resoluto:
– Agora é a sua vez.
Sentei-me no lugar dele e me senti guiando o planeta. Tudo era difícil. Inclusive contar com o carro. Sempre morria. E morria, de preferência, em vias públicas movimentadas, fazendo com que eu também morresse... de vergonha. Quem quer saber se você está aprendendo? O pessoal quer é passar. E o fusca nem aí. Não pegava e pronto. O negócio era empurrar, instrutor e eu. Mico geral.
Quando o danado não morria, era qualquer outra coisa: disco de embreagem patinando, freio no fim, pneu furado, vela fraca fazendo o motor trabalhar quase desmaiando, carburador sujo... Parece que o carro tinha o compromisso de sempre avisar que ele era velho, que não aguentava mais muita coisa.
Não sei quem era mais fiel: se o instrutor a mim, se eu ao fusca ou o fusca ao enguiço. E nessa complicada fidelidade, íamos os três sempre na mesma hora, nas mesmas ruas, na mesma teimosia de um ensinar, o outro aprender e o terceiro querer funcionar. Não saiu muita coisa daí.
Dois marmanjos dentro de um vetusto carro do povo. Talvez pensassem, quando nos viam: “Por que será que esses dois passeiam tanto nesse monte de lata velha?”
Pior era o gasto. Gastava com as aulas e com os consertos do carro. Cada aula terminava na oficina. Teve um dia que alguma coisa explodiu dentro do motor, tipo uma bomba. O estranho é que não saiu fumaça alguma. Nesse dia, o instrutor deixou de ficar preocupado comigo e ficou preocupado com o carro.
– É melhor não mexer. Eu sou instrutor, mas não sou mecânico nem desativador de bombas. Vamos lá chamar o Taturana.
Taturana era o mecânico. Aliás, nunca entendi por que todo mecânico tem apelido estranho. O Taturana veio, abriu o capô, apertou uns negócios, puxou outros e soprou o motor. Não respondeu a nenhuma pergunta que fiz. Resultado: o carro pegou novamente, a aula iria continuar e eu estava devendo o pagamento ao Taturana. Arrisquei mais uma pergunta:
– Por que o motor explodiu?
E o Taturana respondeu, numa filosofia de parafuso:
– Acontece!...
O tempo passou, consegui minha carteira e já podia comprar um carro melhor. Tinha que me desfazer do fusca. Consegui vendê-lo para uma moça que queria aprender a dirigir. (A gente sempre encontra alguém mais bobo do que a gente!) Mais uma que queria aprender a dirigir... no fusca. Bem que o fusca podia ser doado a um centro pedagógico, já que se prestava tanto ao ensino.
Foi-se o meu fusca. Quando a moça virou a esquina levando o fusca, senti um estranho vazio: saudade misturada com remorso. Era velho, irritante, gastador... mas me valeu muito. Porém, assim é a vida, nada fica.
De repente, ouvi de longe uma explosão forte.
Acontece!...
Cafona
14 de Abril de 2021, por José Antônio 0
Cafona...
Assim o brega era chamado nos anos 70. Tinha outras designações: boko-moko, careta... Mas o cafona pegou. Teve até uma novela com esse nome.
Até hoje não sei precisar o que significa “cafona”. Você sabe precisar o que é brega? Então. A coisa vai por aí.
Alguns diziam, naqueles anos 70, que cafona era o que estava anacrônico. Porém, nem tudo o que é do passado é cafona. Beethoven é cafona? Ou ainda: Beethoven é do passado? Beethoven é anacrônico? Por outro lado, algumas coisas anacrônicas não são cafonas. Por exemplo, a palavra “anacrônico” é cafona.
Houve mais chutes semânticos: cafona é o mau gosto. E aí eu penso no funk. Não é cafona nem é gosto requintado. Penso ainda nos canais abertos de TV: preciosos testemunhos do mau gosto, mas não acho que sejam cafonas.
Um dia, alguém me disse que o cafona é o feio que deu certo. Sei lá, sou mais radical. Pra mim, o cafona é o incerto que deu feio.
Está vendo como a questão é relativa? Tudo é relativo, já dizia o Einstein, aquele que tirou uma foto que ficou cafona, olhando pra gente e com meio metro de língua pra fora.
Os tempos mudam e os costumes também. O que era moda ontem passa a ser démodé hoje. Concordo com o velho e bom Machado: os anéis vão embora, mas os dedos ficam. O que atrapalha é que sempre fica um dedo enfiado no nariz. Talvez isso seja o cafona: teimar em fazer bobagem achando que é coisa chique.
Tenho cá minhas cafonices, mas também tenho o direito de perceber a cafonice alheia. Acho cafona o cara dirigir o carro com o som naquela altura. Cafonice irritante. Ninguém admira. Ninguém gosta. Ninguém acha bonito.
Outra cafonice: fotografar, ginecologicamente, a esposa na hora do parto. Tem gente que exibe essa cafonice em álbum e sai mostrando pra todo mundo. É aquela mistura de sangue, placenta, algodão, mãos, carne humana, secreções... e lá no meio um bebê chorão, inchado e amarrado por um cordão umbilical. E a mulher ainda permite que seu íntimo seja mostrado a olhos mais curiosos do que admiradores. Puro mau gosto. Cafonice.
Quer mais uma? Casal de recém-casados tirando foto depois do casamento, olhando pra trás no vidro traseiro do carro. Sem falar nas fotos do beijo no altar: às vezes o retrato é uma detalhada aula de higiene bucal recíproca. Cafona.
A gente vai vivendo e acaba criando umas filosofias. Tenho algumas comigo. Uma delas é: “Ou você aparece bem ou não aparece.” Não é somente a primeira impressão que fica. As outras também ficam.
Ou você aparece bem ou não aparece... talvez o cafona seja o meio termo disso aí.
A vida é um susto
17 de Marco de 2021, por José Antônio 0
Vida e morte. Será que uma se alimenta da outra?
A morte de Brás Cubas deu vida à literatura... mas a vida da literatura deu morte a Dom Quixote.
Tenho comigo que vida e morte se completam, sendo que uma não existe sem a outra. Porém, penso eu cá com minhas vidas e mortes, cada uma tem sua especificidade. A morte dá medo, enquanto a vida dá susto.
A morte apavora, é o fim de tudo, a interrupção do que não podia ser interrompido, o desligamento fatal e inexorável da existência, o fatídico falecimento num dia qualquer de um calendário misterioso. Quem não tem medo disso? Até bicho corre da morte. É instinto puro. O negócio é viver e escamotear a morte para cada vez mais tarde.
Zizica, empregada antiga da minha vetusta e sábia Tia Zenóbia, tem tanto medo da morte que nem a palavra “caixão” ela pronuncia. Velório? Só por procuração. Tia Zenóbia, no alto de sua idade de filósofa por natureza, como se fosse um Eclesiastes de cabelos brancos, vive dizendo à Zizica, tentando chamá-la à racionalidade:
– É tudo bobagem, Zizica. Nada vai ficar. De repente, tudo vira nada. A gente é como se fosse um montinho de pó. Aí, Deus resolve soprar e... oh! Acabou.
Zizica fica cismada e pega a rezar para escapar das baforadas do céu.
Você, leitor amigo, ainda vivo, já sonhou que estava morrendo? Viu só como você acordou? A morte é tão terrível que desejá-la para alguém já tem qualquer coisa de crime.
Por outro lado, a vida assusta. A gente já nasce assustado. De repente, somos arrancados da paz... e de cabeça pra baixo. E lá vem luz nos olhos, sons estranhos, sangue e placenta nos melando o corpo e um tapa no traseiro. Isso tudo assusta!
Quer mais exemplo? Você não vê uma pessoa há muito tempo mesmo, e ela é idosa. Então, você fica sabendo que ela continua viva. O susto é inevitável:
– O quê? Está viva ainda?
É a vida assustando.
Se os jornais dizem que não há vida em Marte, nós nos tranquilizamos. Se as notícias confirmam que há vida em Marte, a Terra toda se assusta.
Velório, então, é um perigo. Todo mundo ali ao redor do caixão, choro, vela, rezas e cumprimentos. O pessoal na maior seriedade e tristeza. O defunto se mexe. A debandada é geral, numa correria louca e cega. Cadê o choro? Cadê as velas? Para onde foram as rezas? Onde foram parar os cumprimentos? O defunto está vivo... e a vida assusta.
Vivemos assim, entre o susto e o medo. Susto perante a imprevisibilidade... medo perante a fatalidade. O susto é o medo que não deu certo.
Talvez seja isto a vida... uma morte que ainda não aconteceu.