Não é com você
18 de Fevereiro de 2021, por José Antônio 0
– Ei, você! Venha aqui, por favor.
Olhei bem, não conhecia o cara. Mas ele me chamava de modo tão convincente que acabei indo. Não era comigo. Era com outro alguém mais atrás. Reassumi minha condição de nada e fui embora.
Outra vez foi na cafeteria. Nem bem virei a xícara na boca, uma senhora de óculos escuros parou à minha frente, sorriu e abriu os braços. Levantei-me da mesa e fui até ela com as minhas asas abertas, pois é sempre bom aninhar-se num abraço. Pois a mulher passou direto. Era com outro alguém mais atrás. Aproveitei as minhas asas abertas e saí de lá voando discretamente, sem olhar pra trás. Mico alado.
E na lotérica? O rapaz que atendia no guichê olhou em minha direção e disse sorrindo:
– Você pode passar à frente.
Não entendi o privilégio que ele me concedeu e adiantei-me um tanto sem graça. Foi aí que chegou ao guichê uma mulher grávida. Era alguém que estava mais atrás. Voltei conformado para o meu lugar, com a cara maior do que aquele barrigão. Rebate falso.
Ontem, quando saí do meu prédio, veio de repente um cachorro enorme latindo em minha direção. E vinha feroz. Gelei. Mas o bicho passou direto. A implicância dele era com um gato... que estava mais atrás. E sumiram, um correndo atrás do outro.
Preciso me localizar melhor. O recado é sempre para quem está mais atrás. Aquela frase é certa: os últimos serão os primeiros.
Hoje pela manhã, passou uma moto e a condutora me acenou efusivamente. Dei um tchauzinho, também efusivo. Não era comigo. Também não era com alguém que estava mais atrás. Era com alguém que estava mais acima. Nem olhei pra janela do sobrado.
Pior foi o Mané Cráudio, meu amigo chegado a pagar altas somas ao mico. Estava no banheiro do shopping quando ouviu na cabine ao lado:
– E aí? Tudo bem? Você está sumido.
E o Mané Cráudio, tentando reconhecer a voz do outro:
– Estou por aqui mesmo.
– A família está bem?
– Todos estão ótimos.
– Quero te contar uma novidade. Você vai adorar.
O Mané Cráudio saiu do banheiro para esperar a novidade e, enfim, certificar quem era o amigo. Não era amigo. Nem era conhecido. Saiu do banheiro um homem falando ao celular.
Comentei essas coisas com a Tia Zenóbia, minha vetusta tia filósofa. Tia Zenóbia escutou pacientemente a minha angústia de ser confundido e disse de modo sábio:
– Na verdade, meu filho, isso pode ser bom. Quando a morte chegar, pode ser que ela leve outro em seu lugar.
Não gosto de aparecer, mas, depois dessa filosofia da Tia Zenóbia, ando meio cismado de ficar um pouco mais atrás.
Tá devendo?
20 de Janeiro de 2021, por José Antônio 0
Outro dia fui comprar um presente para a minha pequena prima. Sempre me enrolo com as compras de presentes. Já dei calça de magro pra gente gorda, camisa de gente velha pra gente jovem, sabonete pra quem não precisava, livro pra quem não gosta de ler... Sou um Papai Noel ao contrário: vivo enchendo o saco dos outros.
A mocinha chegou sorridente atrás do balcão e me lançou um “pois não” enfeitado por um sorriso burocrático. Expus os motivos pelos quais me encontrava em frente a ela naquela loja.
– Menininha, né? – perguntou, com jeito de mãe embutida, que um dia vai aparecer.
– É, é uma menininha sim. – respondi, com jeito de pai paciente, que um dia em mim apareceu.
A garota sumiu para depois aparecer carregando uma porção de caixas coloridas, de diversas formas. Explica dali, mostra daqui, abre uma caixa, fecha outra... até que se instalou um silêncio fatal: qual levar? Fiquei olhando os artigos como se olha para peças de xadrez. Ela tentou opinar, mas em vão. Continuei como estátua de burro empacado.
Finalmente, dei por encerrados meus raciocínios demorados e decidi-me.
– É pra anotar? O senhor tem ficha aqui?
– É, é pra anotar sim. Tenho ficha aqui.
Lá no caixa, a mocinha começou a procurar minha ficha que, costumeiramente, desaparece nas lojas, sempre a colocam no lugar errado. Como não encontrava, a jovem olhou para mim e perguntou:
– Tá devendo?
Todos por ali olharam para mim, esperando uma resposta, querendo saber se eu era um devedor. Sim, eu era um devedor, o tipo mais terrível de dívida: a dívida perante os olhares alheios. Eu devia uma resposta a todos.
Fiquei uns instantes parado e olhando para o ar. Dever... Tá devendo? Pergunta cruel, pois nos coloca em situação de obrigatoriedade, de erro. É duro admitir que está devendo. Estou devendo uma visita... Estou devendo desculpas porque não fui ao seu jantar... Estou devendo um favor ao fulano... E toca a gente a fugir dos cobradores sociais, que aparecem nos lugares mais inesperados. E a gente com as mesmas satisfações: Ainda não tive tempo, mas apareço lá... Logo na hora de eu sair para a sua casa chegou um amigo com a família toda... Um dia eu ainda lhe pago o seu favor, amigo...
Isso tudo vai sedimentando ainda mais o nosso complexo de dívida. Já nascemos devendo: quando criança, aprendi que todos nascem com o pecado original. Nem bem entramos no mundo e já nos cobram algo que já deveríamos ter quitado!!! E a vida inteira a gente passa nessa autocobrança das dívidas que nos assombram.
Saí da loja com o presente dentro da sacolinha. Acho que minha priminha vai ficar uma boneca com a roupinha que comprei para ela. Mas ainda não entreguei, não tive tempo de ir lá, é uma correria danada...
Estou devendo esse presente a ela.
Casar-se com alguém
13 de Dezembro de 2020, por José Antônio 0
Há quem diga que casamento é uma coisa normal...
Mas é melhor que não seja.
O ser amado tem que me transpor da normalidade dos fatos e das esperas corriqueiras.
Por causa do ser amado, minha pele é tapete de arrepio, meu olhar é transparência tranquila, meu desejo é sedução de paz.
Por causa do ser amado, minha voz é contraponto, minhas mãos são parceria, meu abraço é abraçado.
Há quem diga que casamento é promessa e juramento...
Mas é melhor que não seja.
Quem ama não promete... já nasce cumprindo. O amor não jura, pois não força verdades.
É simples e sincero o coração que ama. Por não prometer, não faz cobranças. Ama por amar. Amor intransitivo, explica-se por si mesmo. Amor transitivo, pois transborda para quem é amado.
É verdadeiro o coração que ama. Não precisa jurar em nome de Deus, pois o amor é o outro nome de Deus.
Há quem diga que casamento é até que a morte os separe...
Mas é melhor que não seja.
Casamento não é até que a morte os separe, mas que a vida os torne unidos.
Casar-se já pensando na morte que separa é desperdiçar tantos detalhes grávidos de boas surpresas que o casamento oferece. Casar-se pensando na morte que separa é dar aviso prévio para o amor.
Ser feliz com o ser amado é viver uma vida que agora é mais plena, mais completa, mais forte, mais intensa... pois é a dois.
Há quem diga que casamento é lua-de-mel...
Mas é melhor que não seja.
Nenhuma festa dura para sempre. Enjoa. De vez em quando, é necessário que haja uma gota de pranto, uma pontada de dor, uma febre de angústia. Faz parte. O casamento se alegra com o mel do gozo. Porém, ele se fortalece é com as dificuldades que são superadas com a aliança no dedo.
Há quem diga que casamento é perda de liberdade...
Mas é melhor que não seja.
Por causa de ti, ser amado, sou mais livre para chorar sem timidez... sou mais livre para dançar comicamente na chuva... sou mais livre para esperar tua chegada como se fosse a primeira vez... sou mais livre para ser mais eu em ti. Sou mais livre para ser mais livre, pois tu me queres do jeito que sou. E foi do jeito que sou que fui ao teu encontro... do jeito que tu és.
É melhor que assim seja.
Vai dançar bem assim Lá no Parque do Campo!
18 de Novembro de 2020, por José Antônio 0
No amor, o apaixonado dá o que não tem... o pobre não dá porque não tem... o rico dá o que os outros não têm... o espertalhão dá o que os outros têm... o conformado dá o que tem...
Já estive apaixonado várias vezes. Em cada paixão, vidas e mortes diferentes. Nas minhas paixões andei dando o que não tinha... e fiquei mais pobre ainda. Também dei o que os outros não tinham... e virei palhaço. Dei também o que os outros tinham... e me chamaram de maluco. Porém, pelo menos conformado eu nunca fui.
Lembro-me de uma daquelas festas de exposição de vacas, litros de leite, garotas bonitas e poeira. Era lá no Parque do Campo. Noite gelada, mas o agito fervia. Meu coração andava apanhando por causa de uma morena linda, que me ensinou com seu riso alegre e solto que a vida podia ser uma tentativa de felicidade quando se anda de mãos dadas.
Não queria ir ao baile. Eu sabia que ela estaria lá. Sempre tive comigo que a gente nunca deve se declarar quando está apaixonado, dá tudo errado...mas eu, nunca aprendo. Mário Márcio me empurrava com os argumentos:
– Vamos, Zé! Você não vai ter outra chance de chegar nela. Depois desse baile já entram as férias e aí, só em agosto.
– Até lá, cara, tudo já vai estar diferente, vai esfriar. – completou o Marcos, já ajeitando o cabelo e passando um perfume do qual nunca soube o nome.
E lá fui eu, sabendo que mais uma vez iria dar o que não tinha para receber respostas que sempre tinha. O Parque estava entupido de gente... de gente e de vaca. Rock dos anos 80 numa altura de ensurdecer boi. Ultraje a Rigor, RPM, Metrô, Biquíni Cavadão, Engenheiros do Havaí, Dr. Silvana, Gang 90, Herva Doce, Paralamas do Sucesso, Titãs, Eduardo Dusek, Kid Abelha... todo mundo dançando entre pilastras, mesas, cadeiras enfeites e luzes piscando.
Ela estava lá. Consegui me controlar. Somente as pernas tremiam. Troquei o nome de cinco pessoas, derrubei uma garrafa e pedi café em vez de cerveja. Ela dançava de bem com a vida e com a sua beleza radiante. Parecia que a festa era para ela.
– Vai lá, Zé! Chega! – berrou o Mário naquela confusão.
Chegar eu já tinha chegado. O problema era ir. Fui me aproximando da rodinha onde ela dançava como se aproxima de um touro bravo: dois passos pra frente e três pra trás. Bolero imbecil de quem não tinha – nem tem! – habilidades para dançar rock. Ensaiei uns pulos sem sair do lugar, tentando sacudir meu corpo no ritmo da música. Sentia todos os meus ossos balançarem, inclusive o crânio. Cheguei perto dela. Minha musa morena rodava pra direita e eu rodopiava pra esquerda, ela subia e eu agachava, ela batia palmas e eu abria os braços, eu sorria e ela fechava os olhos...
– Você está linda! Uuuhhhh! – tentei lhe falar de modo moderninho, enquanto realizava minha aeróbica.
– Hein?
– Você está linda! Uuuhhhh!
– Hein?
Falei diferente:
– Uuuhhhh! Você está linda!
E toca criatividade:
– Você! Uuuhhhh! Está linda! Você está... Uuuhhhh! Linda!
– Hein?
– Uuuhhhh!
Aquilo jamais iria dar certo. Virei-me de costas para ela e voltei para a mesa, pulando com os braços cruzados, que nem sapo desiludido com a lagoa. Sozinho na minha mesa, escutei o Paulo Ricardo cantar London London: a música que eu sonhara cantar para ela, numa pracinha perto de sua casa. Fui para a porta do salão, pois uma coisa molhada já começava a denunciar meus olhos. Não olhei para trás e saí sem me despedir de pessoa alguma.
O jeito era esperar o tempo. Quem sabe, num outro momento, num outro lugar, numa outra situação... sem precisar tentar ser o que não sou. Nunca esse outro momento, esse outro lugar, essa outra situação aconteceram. Eu já sabia. Fazer o quê?
Lembro-me que, quase saindo do Parque do Campo, ainda olhei para um cercado. Uma vaca me olhava:
– Uuuhhhh!
Papel higiênico
11 de Outubro de 2020, por José Antônio 1
Lá estão eles. Empilhados, aos rolos, como serpentinas gigantes de um carnaval grotesco. Uns até têm fragrância e cores variadas. Papel higiênico lilás, amarelo, verde... papel higiênico com perfume de lavanda... Cores, olores e flores trabalhando juntos para darem um toque especial ao vaso.
Não gosto de comprar papel higiênico, acho constrangedor. Já me falaram que isso é frescura de minha parte, que papel higiênico é a coisa mais natural do mundo.
– Ah, é? Então faz o serviço no seu banheiro e use o papel higiênico no meio da rua. Cadeia, cara! Atentado ao pudor. O papel higiênico não vai limpar a sua barra.
Não adianta. Compro esse troço por obrigação... ou melhor, por necessidade. No supermercado, olho para os lados, verifico se tem gente vendo, pego um, dois, cinco pacotes (quanto mais melhor, pois assim você fica muito tempo sem precisar comprar), coloco-os debaixo de outras compras e vou tampando como posso as entranhas do meu carrinho.
Tem gente que não está nem aí. Mês passado, vi uma mulher correndo com uns pacotes de papel higiênico em pleno supermercado. Gritava para o marido:
– Bem, ô bem! A gente esqueceu o papel.
Tudo numa boa. É de se admirar.
E no caixa? Cheguei lá com o carrinho. Nenhuma mercadoria teve problema com o código de barras. Pois o papel higiênico teve. A moça pegou os pacotes, levantou, olhou, na tentativa de descobrir o que estava acontecendo. Atrás de mim, uma fila como testemunha do meu mico sanitário-social. Por fim, ela digitou o código, mas nem assim a coisa funcionou. Prisão de ventre no sistema.
Aí, a moça gritou para o outro caixa:
– O papel higiênico desse moço não quer passar.
– Passa mais devagar que vai, se passar depressa tudo desanda – respondeu o outro, numa didática de latrina.
– Nem devagar a coisa pisca por aqui.
Estavam borrando a minha dignidade. Quando já iria desistir dos rolos, a luzinha acendeu e o sistema voltou. Paguei e saí com a cara lilás, a circulação sanguínea toda concentrada no rosto. Vergonha total.
“Você é muito recalcado”, dirá você, leitor. De repente, sou recalcado mesmo. No entanto, não ouso tirar o tampão do meu inconsciente, pois não há papel higiênico que limpe tanta... tanta... deixa pra lá!
Meu amigo Marcus Vinicius de Andrade Peixoto é especialista em Filosofia e existencialista por preguiça. Acabou de escrever um artigo sobre as introspecções do Ser na emergência da sublimação do Nada. Na verdade, o artigo conclui tudo sobre nada.
Marcus Vinicius de Andrade Peixoto tem um bom papo-cabeça. Ele ouviu minha história, escutou minhas angústias e opinou, enfim, sobre o papel higiênico, numa típica filosofia WC (Without Constraint):
– Tô cagando e andando!