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Lagartixa

13 de Marco de 2012, por José Antônio

Aos poucos, comecei a perceber que estava sendo observado. No início, pensei que fosse apenas um incidente banal, desses que se encerram em si mesmos. Mas a coisa foi se repetindo sistematicamente.
 
Dois olhos arregalados passaram a observar meus movimentos. Era só eu chegar em casa, depois das aulas no Assis Resende, e já topava com ela no meu quarto. Paradinha. Não desgrudava os olhos de mim. Big Brother is watching you... Isso é lá com o George Orwell. No drama do meu quarto, Small lizard is watching me!
 
Tudo bem que era uma lagartixa, mas o seu olhar fixo e silencioso me incomodava. Uma vez, ela me deixou constrangido: me flagrou sem roupas. Em frente a ela, eu totalmente nu. Não sei se ela aprovava o que via, porém não tirava os olhos da minha nudez. Aquilo me deixou tão cismado que me vesti depressa e tratei de espantá-la do quarto. Xô, lagartixa voyeur!
 
Lembrei-me do Álvares de Azevedo: “A lagartixa ao sol ardente vive / E fazendo verão o corpo espicha: / O clarão de teus olhos me dá vida, / Tu és o sol e eu sou a lagartixa”.
 
Quem sabe, talvez a invasora noturna do meu quarto fosse uma romântica e ficasse repetindo os versos do Álvares de Azevedo enquanto me flertava. Só que ela não sabia fazer direito. Não se flerta de modo tão invasivo. O flerte é, sim, invasivo. Porém, o olhar do flerte invade num dinamismo ao mesmo tempo suave e arrebatador. Revela e esconde, vem e vai... para depois voltar.
 
Além disso, ela fazia justamente o contrário do meu olhar sobre Resende Costa: tratava-se de uma lagartixa me observando, ao passo que nas minhas crônicas eu é que observo as lagartixas... (Brincadeirinha!!!)
 
As noites foram se somando até que a lagartixa não apareceu mais. Onde ela teria se metido? Seria uma espiã e agora, de posse das informações que desejava, não precisava me observar mais? Sumiu. Deixou de dar as caras.
 
Foi numa madrugada. Eu teimava insone com as palavras, em busca de um pingo de literatura que pudesse tingir o meu papel. Minha caneta caiu e rolou para debaixo da cama. Puxei-a e veio algo junto: a lagartixa. Imóvel e com os olhos estatelados. Estava morta.
 
Acho que entendi o que ela quis me dizer durante todo esse tempo me olhando enquanto estava viva. Também eu, de tanto observar as coisas, um dia ainda vou morrer agarrado à escrita e com os olhos arregalados e impotentes (talvez sem lágrimas) diante do desfecho da vida... espanto que seduz e oprime.

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