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Carta de Lisboa (2021): Livro, pandemia e clima

19 de Novembro de 2021, por José Venâncio de Resende

Volto ao Brasil, quase dois anos depois de minha chegada a Portugal nos primeiros meses da pandemia, com sensações contraditórias. De um lado, a satisfação de ter recuperado parte do atraso nos planos de lançamento do meu livro, e a constatação de que  a ciência está vencendo a guerra contra o novo coronavírus.

Foram realizados dois eventos de apresentação do livro “Cidades e Resendes”: um em outubro na cidade de Viseu, em parceria com a Associação Casa do Brasil; o outro em novembro na Vila Resende, em parceria com a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários e a Foto Ideal Resende. A receptividade deu-me ânimo para investir, nos próximos anos, em novas apresentações do livro (Açores, Cabanas de Viriato, talvez na cidade de Praia no Cabo Verde!) e no projeto de criação do site da Rede de Cidades Resendenses (RCR).

Quanto à pandemia, ciência e indústria, com apoio de alguns governos, cumprem a sua parte, ao produzir em tempo recorde vacinas e medicamentos para enfrentar o novo coronavírus (nova geração de vacinas mais eficientes deverá chegar em 2022). A pandemia ainda não acabou (a Europa já entrou na quarta onda), devendo estender-se por tempo indeterminado, o que é agravado pelo descompasso na vacinação, tanto internamente em países onde há grande contingente de negacionistas quanto na distribuição desigual entre países ricos, intermediários e pobres.

De outra parte, minha sensação é de que estamos perdendo a guerra contra o aquecimento global para os interesses políticos e econômicos. Frustração bem traduzida pela jovem ativista ambiental Greta Thunberg, que vê muito blá blá blá  e pouco resultado. Ouve-se muito a expressão “zero emissões” (meta de descarbonizar totalmente a economia), mas parece mais figura de retórica do que objetivo a ser alcançado neste século. “O sonho de um planeta de quase 8 milhões de habitantes viver em conforto material será inatingível se é baseado numa economia movida por carvão, petróleo e gás natural” (The Economist, 30/10/2021).

Uma coisa é certa: a maior parte da economia mundial está sujeita à meta de emissões zero, o que deverá traduzir em crescente aumento da dívida pública em relação ao PIB de cada país; sem a certeza de que estas metas serão atingidas. Dia desses, ouvi um especialista dizer, num debate, que o maior obstáculo está em enfrentar uma crise climática global com soberanias nacionais. E nesse contexto está presente o desafio de contrapor o nosso comportamento consumista, em geral apoiado/incentivado pelos governos, à necessidade de conter a rápida evolução do aquecimento global.

Basta ver a Torre de Babel em que se transformou a Conferência do Clima (COP 26), realizada em novembro na cidade escocesa de Glasgow, considerada, por muitos especialistas, insuficiente no seu objetivo de limitar, até 2100, o aquecimento da Terra em 1,5ºC acima da era pré-industrial (século 18). Estudo do Climate Action Tracker, um consórcio de pesquisadores, publicado em novembro, mostra que, se todos os planos de descarbonização em 2030 já anunciados fossem executados, haveria 68% de chance de as temperaturas a nível global, em 2100, ficarem entre 1,9ºC e 3.0ºC mais quentes do que nos tempos pré-industriais, com média estimada de 2,4ºC.*  

Se houve avanços na COP26, foram a conclusão do “livro de regras” do Acordo de Paris (sobre planos de ação dos países para alcançar um futuro de baixo carbono e resiliência climática) e a regulamentação do mercado mundial de carbono (redução das emissões globais de gases de efeito estufa por parte dos países vista como um valor econômico a ser transacionado, ou seja, empresa ou país que polui pode comprar créditos de carbono, uma espécie de “autorização”, daqueles que emitem menos e tem florestas; cada crédito corresponde a uma tonelada de dióxido de carbono - CO2). 

Quanto à proposta de banir os combustíveis fósseis (petróleo e carvão), bem, aqui não se fala a mesma língua, principalmente se os interlocutores são os grandes produtores de petróleo (no âmbito da OPEP) e os maiores poluidores do planeta (China, Índia, Rússia etc.). Assim, limitou-se à vaga promessa de “reduzir” o uso do carvão “sujo e os subsídios ineficientes” para os combustíveis fósseis em geral. Também avançou pouco a promessa dos países ricos (feita no Acordo de Paris) de destinar 100 bilhões de dólares anuais em financiamento climático para os países mais pobres saírem da energia fóssil e enfrentarem as catástrofes provocadas pelo aquecimento global (secas, incêndios, enchentes, poluição, furacões etc.). 

O lado positivo da COP26 foi a marcante presença da sociedade civil, sobretudo os jovens. O pavilhão Brazil Climate Action Hub evidenciou a riqueza e a diversidade do País, relatou João Gabriel de Lima, do jornal O Estado de S. Paulo: Por lá passaram cientistas de alto nível (comprometidos em evitar a mudança climática); políticos (da nova geração) e ambientalistas; representantes dos movimentos indígena, negro e de jovens; CEOs de empresas e líderes do agronegócio, lado a lado com ativistas de organizações como o Greenpeace”. “Cada vez mais a nova geração cobra de seus líderes soluções concretas para o clima.” E as lideranças indígenas são cada vez mais ouvidas no cenário internacional sobre a preservação de florestas como a Amazônia. 

Contradições

Durante a COP26, ouviu-se inúmeras vezes a palavra “pobre”, em referência às maiores vítimas do aquecimento do planeta Terra. Porém, esta palavra está eivada de contradições, quer em relação a diferenças entre países quer quanto às populações mais ou menos afetadas pelos efeitos da crise climática. 

Propõe-se, corretamente, acabar com os subsídios (e aumentar impostos) aos combustíveis fósseis, mas como evitar que os mais pobres sejam os mais penalizados pelos aumentos nos seus preços? Há algum consenso, corretamente, de que, num prazo não muito longo, é preciso banir os combustíveis fósseis (petróleo, carvão, gás natural), mas como assegurar que os mais pobres tenham acesso a energias limpas e carro elétrico a preços acessíveis? Defende-se, acertadamente, que é preciso banir o carvão da produção de energia, mas como garantir empregos para os milhares de trabalhadores da exploração de carvão? Procura-se estimular a produção de energias solar e eólica, mas como garantir o lítio usado nas baterias se ambientalistas resistem à exploração deste mineral em seu território? E há também a resistência à instalação de reatores nucleares, que produzem energia limpa, sob a alegação de falta de segurança e de altos investimentos na sua instalação; isto por parte de países que possuem “estoque” de bombas atômicas.

Que é preciso substituir os combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão) por energia renovável (hidrelétrica, eólica, solar) poucos discordam. Mas os custos econômicos e sociais são tantos que há o risco de se criar a “pobreza energética”, o que torna a transição mais difícil, como alerta o analista econômico Celso Ming, do jornal O Estado de S. Paulo. Outros aspectos apontados por Ming são os elevados investimentos necessários, da ordem de US$ 4 trilhões por ano até 2030 (para garantir a neutralidade das emissões até meados do século), segundo estima a Agência Internacional de Energia (AIE); e a pressão enorme que já começa a existir sobre materiais e matérias-primas. “Essa transição exigirá o desmonte de trilionárias instalações de petróleo, carvão, gás natural e frotas de veículos e a substituição correspondente de mão de obra.”

Não apenas isso. Como abrir mão de combustíveis fósseis, que custam menos, e obrigar os mais pobres a adotar tecnologias mais caras que podem agravar ainda mais a sua subsistência? Ainda estamos longe de completar esta transição, mas bastou a pandemia para desorganizar o abastecimento mundial. Pelo menos por algum tempo, teremos de conviver com petróleo e gás natural escassos e caros no mercado global, o que, paradoxalmente, leva à reativação de termoelétricas a carvão mineral igualmente poluidoras (O Estado de S. Paulo, 31/10/2021).   

Transição

Há especialistas que acreditam que haverá uma transição dos combustíveis fósseis (petróleo e carvão) para as energias chamadas limpas (solar, dos ventos, hidroelétrica, etc.), passando pelo gás natural e pelo hidrogênio. Philipp Hauser, associado sênior da think tank alemã Agora Energiewende, admite que é uma mudança complexa; por isso, defende que é preciso garantir que todos os países tenham condições de fazer a transição energética quase que simultaneamente, a fim de evitar que a desigualdade desencadeie graves problemas econômicos e sociais. De qualquer forma, ele reforça que o momento é de investir de forma decisiva na geração renovável e no uso eficiente da eletricidade em setores importantes, como a indústria e o transporte.

Vejamos os casos quase extremos de Índia e Coreia do Sul. A Índia é um país com  desigualdade social gritante, e altamente dependente do carvão para produzir energia, o que o torna um dos maiores poluidores (e poluídos) do mundo; não tem tradição de produzir energia a partir de reatores nucleares, mas possui bombas atômicas. Esta mesma Índia quer postergar ao máximo (para 2070) a eliminação do carvão. Já Coreia do Sul tem planos mais ousados de fazer a transição de indústrias manufatureiras de carbono intensivo para uma economia de baixo carbono, mas terá de conciliar reduções de até 80% nas emissões com prazo relativamente curto (três décadas).
 
The Economist apresenta um cenário futuro para a Coreia do Sul bastante elucidativo: “Fábricas que fazem carros a gasolina e diesel terão de mudar para baterias e veículos elétricos. Estaleiros terão de produzir navios que utilizem combustíveis mais ecológicos, e a indústria petroquímica terá de fornecer estes combustíveis. Fornos metalúrgicos terão de substituir o coque feito a partir do carvão. A eletricidade para a indústria e as famílias, produzida atualmente na maior parte por usinas a carvão, vai ter de mudar para fontes renováveis”. E completa: “No futuro, imaginam os governantes, lugares como Ulsan (cidade metropolitana na costa sudeste do país) e Gunsan (cidade localizada na província de Jeolla do Norte) serão conectados por grandes parques eólicos e cobertos por painéis solares. O hidrogênio verde vai abastecer a próxima geração de navios de cargas e fornos de produção de aço serão neutros em carbono”.  

Certamente, estamos todos no mesmo barco. 

Dinossauro contra a extinção, na voz de Milton Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=KGJgQ4_eStc

*The Economist (13/11/2021)

 

 

 

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