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“Esplêndida aventura”

18 de Fevereiro de 2021, por Regina Coelho

“dicionário, para mim, nunca foi apenas obra de consulta. Costumo ler e estudar dicionários. Como escritor, sou obrigado a jogar com palavras. Logo, preciso conhecer o seu valor exato.”

Essa foi a resposta do escritor Graciliano Ramos (1892-1953) a uma anterior observação do jornalista Homero Senna sobre o assunto em entrevista dele ao autor de Vidas secas (a última do “Velho Graça”), preciosidade publicada originalmente em 1948.

Ainda que desprovida dos predicados do entrevistado em questão, também costumo ler e estudar dicionários. E mais. Não abro mão de ter meus leais companheiros de papel por perto. Não desconsidero as versões online. Acontece, porém, que me acostumei e me afeiçoei aos calhamaços que carrego e manuseio com prazer. Uma paixão, é verdade. Como professora, dos tempos em sala de aula, ao ensinar e incentivar o uso deles aos alunos mais novos, gostava de rebater o apelido que têm de “o pai dos burros” e preferia chamá-los de “o pai dos inteligentes”, os que vão em busca do conhecimento.

É fato que a origem exata desse epíteto não se tem. Segundo Ana Salgado, lexicógrafa portuguesa, “poderíamos, é certo, estabelecer uma relação entre dicionário, obra de saber, com o não saber de quem o vai consultar. Mas não. A expressão deve-se ao facto de o pai de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (autor do Dicionário Aurélio) fabricar carroças puxadas por burros. Essas ditas carroças eram muito cobiçadas pelos passageiros que diziam que não tinham palavras para elogiar o trabalho de seu pai. Assim, Aurélio (ainda menino) decidiu fazer um sumário dos termos usados para os elogios, nascendo o seu primeiro dicionário: o pai dos burros! Lindo, não?”

Indo muito além das indispensáveis definições dos verbetes em todas as suas acepções, esse importante instrumento de pesquisa fornece informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia (origem) das palavras, entre outras, abrangendo um campo amplo de conhecimentos lexicográficos. E praticamente todas as áreas do conhecimento humano, daí envolver em sua criação o trabalho coletivo e especializado como suporte técnico ao dicionarista. Fazer um dicionário, sabe-se, é entregar-se a um projeto grandioso, exaustivo, de intermináveis anos e até sacrifícios à saúde de quem a ele se dedica.

Algumas curiosidades sobre essas monumentais fontes de estudo merecem aqui um registro em forma de palavras. A primeira é “saudade”, que não tem tradução em outras línguas. A segunda é, preparem-se!, “pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico”, a maior palavra do português, com 46 letras, registrada no Dicionário Houaiss da língua portuguesa em 2001. Significado: relativo a, próprio de doença pulmonar causada pela aspiração de cinzas vulcânicas. A terceira palavra é “alfabetizar”. v.t.d. 1. Ensinar a ler: “Capitão Josué contratou uma professora, em Santana, para alfabetizar os filhos.” (Gentil Ursino Vale, Confidências do Agreste, p.11) – Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

Além de popularizar o acesso ao dicionário, Aurélio Buarque também inovou ao trazer citações de outros autores ao lado da definição das palavras. É o que vê acima ao usar a frase de um livro do escritor resende-costense Gentil Vale para contextualizar o verbete “alfabetizar” (em sua primeira acepção), um reconhecimento público de peso à obra do nosso conterrâneo.

“Fazer dicionários é como caçar borboletas. As palavras voam, é preciso caçá-las”, dessa forma definia seu ofício Aurélio, cujo nome virou nome de dicionário, lançado em 1975 e o maior fenômeno do mercado editorial brasileiro. E termino com Monteiro Lobato (1882-1948). Lembrado pelo jornalista citado no início desta matéria (ao entrevistar Graciliano) como também um leitor de dicionários, Lobato, referindo-se ao Dicionário Aulete (publicado em Lisboa, 1881) fala com entusiasmo em carta ao amigo Godofredo Rangel (escritor) da “aventura esplêndida” que estava sendo para ele o passeio pelo “oceano das palavras”.

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