“no mundo da literatura, desembarquei desde que me entendo por gente. Ainda menino, descobri que tinha vocação para mentiroso. Contando para os amigos uma história lida ou um filme visto, começava a inventar, alterando o final, acrescentando personagens e episódios, enriquecendo o enredo. Em suma, ajudando o autor.
(...) Desde criança eu já achava que a verdade está muito além da realidade. Para mim, nossos sentidos eram fracos e deficientes, de pouco alcance: a vista devia enxergar mil quilômetros e ver através das paredes, o ouvido devia ouvir além da barreira do som.
Como acontece com o menino no espelho do romance que publiquei em 1982, e que reflete a experiência da minha infância. Adotei nele um critério inverso ao usual: em geral se escreve um romance com elementos da realidade como se fosse ficção. Fiz o contrário: usei a ficção como se fosse realidade, usei todas as minhas fantasias infantis como se tivesse vivido tudo aquilo realmente. É o meu nome, o nome dos meus irmãos, do meu pai, o endereço da casa onde nasci. Todo o enquadramento é pessoal, autobiográfico.
Conto como fiquei invisível quando era menino, como aprendi a voar, como conheci o Tarzã, como derrotei o valentão do colégio, como enfrentei uma onça, como fui campeão de futebol. Um dia encontrei na rua uma senhora que me disse: ‘Você andou exagerando um pouco...’. Inventei tudo isso para descobrir que, no fundo, sou ainda aquele menino.”
o mentiroso em questão é Fernando Sabino, “o menino no espelho” da obra homônima, uma autoficção, a fusão de duas formas de escrita que, em princípio, são consideradas opostas: a autobiografia e a ficção. No específico exemplo, é a história da infância do autor, vivida em Belo Horizonte, intercalada com as tais passagens ficcionais citadas anteriormente.
Fernando Tavares Sabino (1923-2004) estreou na literatura aos 13 anos, com uma história de ação, texto publicado por uma revista da Polícia Mineira chamada Argus. Aos 18, com a ajuda do já consagrado escritor Marques Rebelo (1907-1973), um dos primeiros com quem começou a conviver, lançou seu primeiro livro, Os grilos não cantam mais, cuja edição, de mil exemplares, ele pagou com a parte a que teve direito na venda de um lote feita pelo pai.
O jovem escritor enviou um exemplar a Mário de Andrade (1893-1945), àquela altura, também um nome de prestígio na cena literária nacional, e que acusou o recebimento do livro através de uma carta datada em 10/1/1942 endereçada ao aprendiz e na qual, chamando-o pelo nome completo, de imediato, lhe faz a seguinte ressalva: “Se você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino”. Avaliada (a carta) bem mais tarde pelo escritor mineiro como talvez o acontecimento mais importante da sua vida na literatura, a resposta do autor de Macunaíma deu início ainda a um diálogo epistolar entre mestre e discípulo que durou até Mário morrer. Sabino publicou em livro, sob o título Cartas a um jovem escritor (1982), as cartas do amigo por acreditar que pudessem ser úteis a outros jovens escritores.
No caminho desse narrador de muitas prosas, surgiu também Clarice Lispector (1920-1977), de quem se tornou amigo, de encontro diário, enquanto Clarice esteve aqui. E depois que ela deixou o país, “a amizade continuou, intensamente vivida através de cartas, com uma frequência às vezes semanal, de 1949 a 1969 – durante 23 anos, portanto”, dizia. Dela ele se tornou uma espécie de agente literário no Brasil.
O rapaz que chegou a pensar em ser músico de jazz, antes de optar pela carreira de escritor, com o tempo, homem maduro, criou fama especialmente por suas histórias curtas, mas é também autor de duas narrativas longas e relevantes na literatura brasileira: O encontro marcado (1956) e O grande mentecapto (1979). E responsável por conquistar leitores há décadas com seu estilo claro, preciso e bem-humorado.
Neste comemorativo centenário de nascimento de Fernando Sabino, todas as honras a ele, que escolheu ser lembrado como aquele que “nasceu homem, morreu menino”.