Ele cresceu em um tempo em que homem que era homem cortava cabelo no barbeiro, modelava o corpo jogando futebol nos campos de várzea, correndo pelas ruas e nadando nos rios e cachoeiras. O máximo que permitiam à vaidade masculina era “aqua velva”. E é por isso que ele, adolescente, rezava todo dia para nascer um fio de barba. E rezava também para fazer quatorze anos e poder entrar no cinema para ver filme proibido e depois para fazer logo dezoito e poder ver Emmanuelle em todo seu esplendor, sem a folha da videira que cobria Eva e fulminava sua curiosidade.
As coisas foram mudando. Quase uma mutação. Ele se lembrou do dia em que as mãos trêmulas do Jesus Barbeiro insistiram em raspar com uma navalha a pele fina e delicada do rosto apavorado de seu sogro. Em todo lugar - assim como se surgissem ao lado da barbearia do Jesus Barbeiro, do Zé do Jesus Barbeiro e depois do Cláudio do Zé do Jesus Barbeiro – apareciam novos e charmosos salões de beleza. Salões unissex. Edward mãos de tesoura tirou proveito reencarnando-se em múltiplas almas e revelando-se em inusitadas esculturas capilares. Os homens se renderam àquelas mãos ágeis e precisas e se libertaram da ditadura e do monopólio do Príncipe Danilo, ainda que não dos jogadores de futebol (os cabeça-de-Neymar que o digam!).
Os campos de várzea foram vitimados a uma pela especulação imobiliária e a outra pela proliferação indiscriminada de pessoas nas cidades. Não foram em praças que os campos se transformaram. Foram em casas, comércios e edifícios. Pelo baixo retorno em votos que rendiam os investimentos em obras de saneamento, os córregos e rios se deturparam em redes de esgoto a céu aberto. E porque todo mundo passou a ter carro, as ruas foram asfaltadas para não empoeirarem os carros e se converteram em garrafas (para engarrafarem os carros). Assim, a despeito dos cabelos arrumados, das unhas feitas e da pele limpa, foi-se sedentarizando lenta e gradualmente e uma calosidade proeminente, macia e redonda, foi se desenvolvendo em seu abdômen, flácido.
À medida que ele conhecia o universo feminino, de dentro e na intimidade unissex dos salões, foi se convencendo de cuidar de outras coisas que não só do cabelo. Pareceu-lhe de bom tom cuidar das unhas, mantê-las limpas e aparadas. E num lampejo ou descuido, marcou limpeza de pele com a Regina do Salão “por favor, depois que todo mundo tiver ido embora”.
Os cabelos dele foram ficando cada vez mais grisalhos também. Um dia “fizeram sua cabeça”: convenceram-no a aplicar um produto novo, revolucionário, que prometia a cor natural dos cabelos de volta. Não, não era tintura, nada disso! “Aos poucos, sem ninguém perceber, os cabelos voltarão à cor natural”, prometeram-lhe, tal qual o processo às avessas do branqueamento. Ele não se fez de rogado e seguiu, voluntariamente, ao seu cadafalso, um rato de laboratório! Os dias que se seguiram à experiência foram uns dos mais vexatórios da vida dele. Enquanto pôde refugiou-se em casa, mas não tinha como deixar o trabalho e seguia, constrangido, tentando disfarçar seu cabelo azul pelas ruas. Prometeu a si mesmo que nunca mais tentaria mudar a cor dos seus cabelos.
Recentemente, mirando uma foto dele, de sunga, sorridente “não sei rindo de quê” à beira de uma praia que mal se lembrava de onde ou quando, foi que ele se deu conta da sua barriga. E de que do tamanho 38 tinha passado a usar o 40 e que o 40 já não lhe servia mais... Não havia medida em salão unissex que pudesse reduzir essa imperfeição. “É a cerveja, eu já te disse, é a cerveja...”, insistiam uns. “Faz a dieta da sopa!”, diziam outros.
No dia seguinte deu origem à sua catarse. Deixou o carro na garagem, caminhou por sete quilômetros até o sítio dele lá na beira do rio Santo Antônio, arriscando pequenas corridas e lavou-se e à sua alma nas águas correntes do rio. Em casa fez a barba e borrifou “aqua velva” no rosto – ainda existem homens como antigamente! – e pensou “se eu parei de fumar, posso parar de comer”...
A barriga
13 de Novembro de 2012, por Rafael Chaves