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A vida como ela é!

12 de Maio de 2010, por Rafael Chaves


Meu pai, outro dia, acordou bem não! Cheguei ao seu quarto e o vi ao lado da cama ainda se vestindo, apertando os cintos para segurar as calças e antes mesmo do meu “bom dia” disse assertivo que “contei mais de mil cavalos”. “Mil cavalos?”, perguntei meio espantado. “É... mais de mil...”. “Uai, mas onde isso, Pai?”, tentei extrair da situação. Nessa hora fez um bico e emendou que “essas cavalgadas que vocês fazem aí é fichinha!”. Disse que tinha feito uma cavalgada pelo Brasil, norte a sul, e que seu encargo era contar todos os cavalos que visse. Contou mais de mil e quatrocentos, segundo ele. Mais tarde tentei puxar assunto, mas ele declinou. Creio que voltou à razão. (Lembrei dos tempos em que ele fazia a Cavalgada Bolívar de Andrade e gostava de parar numa porteira e contar quantos cavaleiros havia. Chegou a contar mais de quatrocentos...).
 
Meu pai, outro dia, acordou bem não! Cheguei ao seu quarto e o vi ainda deitado na cama, olhos espantados, e antes mesmo do meu “bom dia” disse afirmativo que “um filho meu me roubou!”. “Que isso, Pai, de onde você tirou isso?”. “É... me roubou...”. “Quem, Pai?”, tentei colher da circunstância. Ele me disse um nome que eu não vou dizer qual. “Que isso, Pai, deve ser porque ele te pediu um dinheiro emprestado e ainda não pagou.” “Não, ele era pequeno...”. (Coitado do meu irmão, cinquentão, com uma fama dessas desde pequeno!) Mais tarde nem tentei puxar assunto, mas ele mesmo esclareceu e me disse que fora um sonho... Ainda bem!
 
Meu pai, outro dia, acordou bem não! “Preciso ir no banco tirar um dinheiro.”, disse ele. “Mas hoje é domingo, Pai!”. “Vou assim mesmo, se eu bater na porta eles me atendem.”, retrucou. Meu pai havia ressuscitado o Banco Almeida Magalhães, quem diria!
 
Meu pai não anda bem não! Cismou com umas coisas e, pasmem, anda perdendo a paciência. E paciência era a palavra de ordem, o preceito de vida dele. De vez em quando solta uns impropérios pelo ar. Inimaginável pouco tempo atrás. Levamos ao médico e, agora, está mais calmo.
 
A gente fica triste! Pai é referência para qualquer filho, e não é diferente para mim. Depois tem esse negócio de cabeça, que é difícil de compreender. Será que a gente fica assim meio fora do ar na velhice para se esquecer dela própria? Teria a vida na velhice outra dimensão, assim com a infância tem a sua?  Quereria eu ter, numa hipotética vida de oitenta anos, dez de infância, sessenta e nove de juventude (com experiências e conhecimentos se acumulando) e só um ano (ou menos) de velhice. Mas eu não sou deuso!
 
Mas ainda assim, ainda que sua mente pareça não funcionar bem, meu pai vai todos os dias à sua hortinha, rega e cuida dos pés de couve, das mudas de cebolinha, das touceiras de taioba, das estacas das vagens, das folhas das alfaces, dos vasos de flores... Cuida da vida, do que vive – vegetais que sejam –, que brota e se renova e continua, completando seu ciclo de semente, planta, flor, fruto, semente (outra semente que não aquela, mas a mesma semente)...
 
Se meu pai cuida é porque admira a vida. Que motivo outro haveria? Só pode cuidar da vida quem a deseja. E se cuida de outras vidas é porque sua vida depende das outras vidas. A sua própria vida deve ter sentido para ele se ela, a sua vida, faz sentido para outras vidas.
 
Meu pai não está muito bem não! Curvou a coluna, cismou de usar bengala, apresenta um olhar meio vago, esbraveja com o que não concorda ou acredita, anda engordando de tanto “qsp” nos comprimidos que toma regularmente de manhã, depois do almoço e à noite. Protesta que está impedido de ir à cidade sem companhia para fazer as compras que sempre fez, ou para ir ao Banco sacar dinheiro, ou para ir à Associação dos Veteranos da FEB – Força Expedicionária Brasileira. Não diz, mas não está achando graça de não poder mais andar de moto-táxi (meu pai andava de moto-táxi aos 90 anos, quase todos os dias, trazendo a sacola de compras, a mando da minha mãe). Não anda muito satisfeito com as limitações que lhe estão sendo impostas.
 
Eu não ando muito bem não em ver meu pai assim! Mas meu pai continua regando e cuidando das plantinhas...

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