Zé Rameiro vinha carregando essa alcunha não era à toa, embora pouca gente pudesse entender o que estava subentendido, o que estava na origem do seu apelido. Assim, de supetão, os mais desavisados poderiam pensar que Zé fosse algum curandeiro, dado a rezas de benzer maldições ou entendido de formular beberagens feitas de ervas para curar doenças. Que nada! Mas depois eu explico, antes tenho que contar o caso da cuia.
O nome de Das Dores, como era conhecida, era, na verdade, Maria das Dores. Seu nome, coitada, lhe era apropriado. Das Dores era uma sofredora. Casou-se ainda adolescente e inocente com Bastião e vivia para cuidar dos dois filhos e do marido. Tudo seria normal na vida de uma mulher daquela época, não fosse a estupidez e ignorância de Bastião. Bastião era um fazendeiro de modos primitivos e ações violentas. Todos os dias, ao chegar dos afazeres rurais, não se dava sequer ao trabalho de limpar as solas da botina e ia casa adentro despejando uma mistura de poeira, barro, bosta de vaca e todo tipo de sujeira. Não satisfeito, olhava de soslaio por sobre seu ombro e resmungava de Das Dores, dizendo que ela não fazia a limpeza da casa direito. Ainda que ela se esforçasse para esperá-lo com uma janta gostosa e farta, Bastião costumava reclamar cada hora de uma coisa. Um dia era que a comida estava fria, noutro que estava salgada, noutro que o bife estava malpassado... Havia os dias em que Bastião, já na primeira garfada, cuspia a comida no chão, enquanto esbravejava reminiscências: “êta saudade da comida da minha mãe!”. Tinha também o costume de gritar desaforos, ameaças e palavrões para Das Dores, na vista das crianças. Não raro, Bastião deitava-se sem tomar banho e, catinguento, exigia carícias e intimidades de Das Dores.
Apesar do sofrimento, Das Dores conservava uma beleza e um encanto que não havia homem na cidade que não a admirasse. Zé Rameiro já havia se apercebido disso. De há tempos, Zé Rameiro vinha dando um jeito de se ajeitar nas proximidades de Das Dores, nas missas dominicais. A mulher de Zé Rameiro, Aninha, beata juramentada, não dava conta dos propósitos de Zé Rameiro. E à medida que Zé cada vez mais se aproximava de Das Dores, ele a alcançava com olhares insistentes de segundas intenções que Das Dores já não conseguia mais ficar indiferente. Desse modo, sucessivamente e sorrateiramente, Zé Rameiro foi se apresentando a Das Dores, ganhando-lhe a confiança, despertando-lhe desejos até o dia que lhe fez, finalmente, propostas libidinosas a que Das Dores não teve como resistir.
Mas sabe como é, em cidade pequena não se consegue acobertar segredos por muito tempo e o caso veio ao conhecimento público, não se sabe como. Em nome dos bons costumes e da moral, coube a Seu João, homem pudico e sacristão nas horas vagas, reconhecido por suas intervenções terapêuticas em problemas domésticos, reconciliar os casais. Não foi fácil! Convencer Bastião a esquecer de que carregaria apêndices córneos por toda uma vida foi uma tarefa hercúlea. Até Aninha já não queria perdoar mais essa traição de Zé Rameiro. Chorando convulsivamente para Seu João, desabafou: “não aguento mais!”.
Agora é que explico a alcunha de Zé Rameiro. O “rameiro” vinha de “rameira”, que seria a mulher dada, literalmente, a manter relações com várias pessoas. A fama de conquistador de Zé corria nas entrelinhas e bastidores da cidade. O dia que ele se vestia de roupa domingueira, embora não fosse domingo, passava brilhantina nos cabelos e se perfumava, podia saber, o homem estava excitado.
Voltemos! Seu João conseguiu restabelecer a ordem e os costumes e tudo voltou ao antes. Seu João resolveu comemorar o feito no bar da esquina e, encostado no balcão, pediu uma pinga. Não se via Seu João em bar desde tempos imemoriais. Como o dono do bar não lhe perguntasse nada, ele arriscou:
- Não vai perguntar a razão de eu estar aqui tomando essa pinga não? – fez-se de rogado. Mas como o dono do bar desdenhasse, dando de ombros, ele insistiu:
- Consegui juntar o Bastião e a Das Dores e o Zé Rameiro e a Aninha de novo. – E levantou a pinga na altura dos olhos.
- Num adianta nada! Cuia que levou pimenta jamais perde o ardume. – decretou o dono do bar, impassível.
Seu João ouviu aquilo, olhos arregalados, enquanto a pinga descia queimando-lhe as goelas e fazendo brotar uma lágrima em seus olhos. Que tristeza!